ENTREVISTA - Edmar Almeida: ‘Os rios são um recurso público estratégico’

 GLAUCE CAVALCANTI

23/08/2017

 

 

Antes de privatizar a Eletrobras, o governo deve construir a nova regulação do setor elétrico, com regras claras, avalia o professor do grupo de Economia da Energia do IE/UFRJ. Ele ressalta ainda o papel estratégico dos reservatórios do Brasil

O modelo de geração de energia de matriz hídrica no Brasil é comparável ao de outros países?

Canadá, Noruega e outros grandes, como China e Rússia, ou mesmo EUA. Com exceção deste último, nos demais predomina o modelo estatal. Mas o Brasil tem o sistema de matriz hidrelétrica com a maior capacidade de reservatório do mundo. Trata-se de um ativo diferenciado. Isso tem um papel estratégico enorme no nosso setor elétrico. Não será possível, no processo (de privatização da Eletrobras), ignorar isso, o tamanho e a importância dos reservatórios. Os rios são um recurso público estratégico. A discussão sobre quem tem potencial para desenvolver uma bacia hidrográfica, garantir o uso múltiplo da água, não apenas em geração elétrica, mas para irrigação e outros fins, é fundamental.

 

Daí o modelo estatal?

Há também razões econômicas. Construir uma hidrelétrica com reservatório exige investimentos vultosos, dos quais a iniciativa privada não dá conta. O modelo estatal muda de país para país. Há uma enorme diferença das termelétricas, por exemplo, do ponto de vista do interesse público.

 

O governo argumenta que a Eletrobras vai melhorar.

O argumento é que a privatização vai melhorar a governança da Eletrobras. Todos sabem que isso está muito ruim nas estatais. Mas o debate tem de chegar a uma conclusão clara sobre de que forma a menor participação do estado na Eletrobras vai melhorar as condições da companhia. Ou a vantagem é apenas o dinheiro? É preciso lembrar o interesse público envolvido. Ainda existe o nó político-regulatório. Falta aceitação social a novas hidrelétricas no Brasil, em consequência de problemas de execução em alguns projetos.

 

A privatização da geração já foi proposta no Brasil?

O Brasil tem hidrelétricas privadas. Na década de 1990, foi abordado o processo de privatização (da geração), mas houve grande resistência, principalmente de Minas Gerais e Nordeste. Agora, continua sendo preciso responder aos desafios que foram levantados naquela época.

 

Como quais?

Existe a questão dos reservatórios, que passa por entender qual será o uso e quem pode gerar energia. É preciso garantir que o interesse privado não se sobreponha ao uso público da água.

 

É uma questão de regulação?

É preciso entender como seria a regulação, porque dentro do próprio setor elétrico existem interesses econômicos muito pesados. A distribuição de custos e benefícios, num modelo setorial com a retirada da Eletrobras e a entrada de um controlador privado, que não está ali para fazer intervenção para rebaixar tarifa, como é que fica? Existe um jogo de forças.

 

Na época do racionamento, especialistas diziam que a situação teria sido pior se a geração tivesse sido privatizada.

Começaram a privatização pela distribuição, porque era um segmento que encontrava menor resistência política e tinha maior atratividade. É o caixa do setor elétrico. Para o governo desesperado por recursos, foi feito assim. Vender a hidrelétrica é mais difícil, pelo modelo setorial que desenha o mercado de energia elétrica.

 

Qual lição a década de 1990 deixou?

É preciso ter uma regra muito clara para o setor, sobre o fluxo de caixa previsto. Não se conseguiu definir um modelo de mercado. Agora, existe a proposta de remodelação do marco regulatório do setor elétrico. Primeiro, é preciso fixar as regras.

 

O prazo de seis meses para privatizar a Eletrobras (que chegou a ser citado pelo governo anteontem) seria viável?

Seria um desafio tremendo fazer a reforma do setor elétrico num período tão curto. O debate sobre a privatização pode ser parte da concepção desse novo modelo (de regulação). Mas a venda de ativos deveria ser posterior. O valor dos ativos depende das condições do mercado.

O globo, n.30697 , 23/08/2017. ECONOMIA. p. 21