De que estatais precisamos?

Marcio Holland

06/07/2017

 

 

Em artigo com o título "Lucro das estatais cresce quase 2000%, publicado neste jornal, em 9/6/2017, Claudia Safatle repercute os bons resultados de poucas grandes empresas estatais, como Petrobras, Eletrobras, Banco do Brasil, entre outras. Celebra-se, assim, um resultado pontual de algumas poucas estatais. Contudo, o universo de estatais passa de 400, se contarmos as estaduais, municipais, além das 154 controladas pela União. E elas, em geral, estão muito mal. Defendo aqui uma avaliação mais ampla e mais profunda destas empresas.

O tema de estatais me parece tão relevante quanto o de gastos governamentais, ou o da reforma tributária. Afinal, o Estado brasileiro manifesta a sua fragilidade nestes pilares, a saber, a coleta ineficiente de impostos, a execução não efetiva dos seus gastos e a gestão incompetente de seu patrimônio (as estatais).

O que sabemos é que a grande maioria destas empresas públicas vêm sofrendo de abuso do poder controlador, de gestão precária e de administradores de competência duvidosa, de intervencionismo do poder Executivo em seus planos de investimentos e em suas políticas de formação de preço, além da recorrente influência nefasta político-partidária. Isso tem permitido a montagem de esquemas de corrupção e condutas indevidas, muitas delas amplamente reveladas na bem-sucedida Operação Lava-Jato.

Historicamente, o Estado brasileiro passou da condição de empreendedor, ao produzir bens intermediários e energia para o setor privado, com elevados subsídios, e assim permitiu a industrialização, para controlador de spreads bancários e de tarifas, a fornecedor de fartos créditos subsidiados em nome das políticas anticíclicas.

Nosso levantamento preliminar já se dá conta de que os Estados e municípios controlam 292 empresas, além daquelas 154 da União. Elas estão distribuídas em vários setores da atividade na forma de bancos, empresas de saneamento básico, geradoras e distribuidoras de energia elétrica, serviços funerários, etc. A média de empresas estatais nos países membros da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) é de 50 empresas, sendo que ex-economias comunistas detém bem mais, similar ao caso do Brasil (sic!); as demais economias europeias contam com muito menos.

O patrimônio dos contribuintes na forma destas empresas deve ultrapassar a R$ 1 trilhão, sendo que somente as 30 empresas estatais listadas na B3, bolsa de valores do Brasil, tem capitalização de mercado de R$ 300 bilhões. Todas, juntas, devem empregar mais de 1 milhão de trabalhadores, dado que somente as da União empregam cerca de 500 mil. Trata-se de estimativas precárias, pois sequer sabemos o básico: quantas estatais o país ainda tem?

Há forte indícios de que muitas delas não devem ter sido criadas por lei, como determina a Constituição Federal, nem mesmo conseguem justificar sua função social, como regulamenta a nova lei das estatais, a Lei 13.303/2016, também conhecida como Lei de Responsabilidade das Estatais.

A grande maioria das empresas estatais nem mesmo têm justificativa para a sua existência como tal

No começo do século passado, eram menos de 20 empresas. Com o processo de industrialização e urbanização foram sendo criadas tantas empresas que, em 1980, já eram 382! Desde o começo do ano 2000, a cada problema pensa-se em criar uma nova estatal para cuidar do assunto. Esse foi o caso, por exemplo, da Valec, com a função de construir e explorar a infraestrutura ferroviária. Não sabemos quantos quilômetros de ferrovia foram construídos por essa nova empresa. Mas já sabemos que seu ex-presidente foi condenado a 10 anos de prisão.

Entre as centenas de empresas públicas, tem-se casos de diversos bancos de desenvolvimento (BNDES, BDMG, Basa, BNB, etc), de bancos concorrendo entre si, como no caso da Caixa com o Banco do Brasil, e de empresas públicas concorrendo com empresas privadas, sem qualquer justificativa econômica.

A existência de uma empresa estatal, como previsto na Constituição Federal, de 1988, em seu art. 173, se justifica pelo relevante interesse coletivo ou por imperativo de segurança nacional. Mas o que é, afinal, "interesse coletivo"? Com a regulamentação da nova lei das estatais, pelo Decreto 8.945/2016, pode-se dizer que está bem esclarecido o que seria esse interesse coletivo. A partir de então, uma empresa pública precisa promover a alocação eficiente dos recursos, ser sustentável em termos econômico-financeiro e também em ternos socioambientais, atuar em mercados dando acesso a bens e serviços, desde que de modo economicamente justificável.

Uma avaliação preliminar que realizamos sobre a conformidade legal das empresas estatais ao novo regramento jurídico, particularmente em termos de governança corporativa, indica que, mesmo as empresas listadas em bolsa, portanto, referência de governança corporativa para as demais estatais, não passam em critérios por vezes essenciais. Muitas delas simplesmente não conseguem justificar sua função social.

Afinal, elas precisam demostrar que cumprem uma política pública de interesse coletivo, com alocação eficiente de recursos, e participam de mercados de modo economicamente justificado e ainda precisam demonstrar responsabilidade social corporativa em linha com as melhores práticas de mercado. Elas precisam se enquadrar à nova lei até maio de 2018. A grande maioria das estatais nem mesmo têm justificativa para a sua existência como tal.

Neste caso, falar em privatização generalizada é abordagem neoliberal ou responsabilidade com o dinheiro do contribuinte? A população sente mesmo a qualidade dos serviços prestados pelas estatais ou as percebe como espaço de privilegiados e, por vezes, de atores com condutas indevidas? Faz sentido a sua existência se elas não cumprem adequadamente o seu papel?

(...)

Marcio Holland é professor na Escola de Economia da FGV, foi secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda e é autor do livro "A Economia do Ajuste Fiscal", 2016, Ed. Elsevier.

 

 

Valor econômico, v. 17, n. 4291, 06/07/2017. Opinião, p. A12.