Correio braziliense, n. 19890, 06/11/2017. Opinião, p. 09.

 

 

Desigualdade, a pior mancha da nossa história

Roberto Bocaccio Piscitelli

06/11/2017

 

 

A desigualdade é provavelmente a marca mais perversa da nossa história. Mesmo em períodos recentes, quando se reduziram a miséria e a pobreza e se verificou uma ascensão das classes baixa e média baixa, não houve mudança significativa da estrutura social ou da repartição entre as rendas do trabalho e do capital. Segundo o Banco Mundial, 28 milhões de pessoas haviam superado a linha da pobreza, ainda que mantida estável a grande concentração no topo da pirâmide.

Infelizmente, os avanços estão se desfazendo rapidamente e o país está reingressando no Mapa da Fome. Para vários especialistas, a melhoria observada naquele período recente teve a contribuição importante do aumento real do salário mínimo, da formalização do mercado de trabalho, do aumento do gasto social em educação e dos programas de transferência direta de recursos.

O economista Thomas Piketty e equipe tiveram o grande mérito de demonstrar como, em escala mundial, a concentração de renda e patrimônio vem se acentuando nas últimas décadas e, apontando as dificuldades de acesso aos dados das declarações de rendimentos no Brasil, logrou provocar certo constrangimento, de que resultou uma maior abertura por parte de nossas autoridades e serviu para comprovar, pelo menos em parte, a escandalosa concentração e as deformações do sistema tributário, que funciona como reforço continuado à consolidação do processo.

O alerta estimulou o lançamento da Campanha Nacional pela Redução da Desigualdade Social, de que o Conselho Federal de Economia participa com mais 25 entidades nacionais e estaduais, constituindo-se, justamente, como um dos eixos a mudança do modelo tributário. A propósito, a Oxfam Brasil, que integra uma confederação internacional de 20 organizações que atuam em mais de 90 países, lançou um instigante estudo — A Distância que nos une: um retrato das desigualdades brasileiras — infelizmente pouco difundido pela mídia, com dados impressionantes, apoiados em dezenas de referências de instituições (e autores) nacionais e internacionais.

No mundo, oito pessoas detêm o mesmo patrimônio que a metade mais pobre da população. Enquanto isso, mais de 700 milhões de pessoas vivem com menos de US$ 1,90 por dia. O 1% mais rico possui a mesma riqueza que os outros 99%. No Brasil, entretanto, a situação é relativamente pior: seis pessoas possuem riqueza equivalente ao patrimônio de 100 milhões de brasileiros mais pobres; e os 5% mais ricos detêm a mesma fatia de renda que os demais 95%. Saliente-se, aliás, que a concentração da propriedade é maior que a de renda.

Entre 2001 e 2015, os 10% mais ricos se apropriaram de 61% do crescimento econômico, de apenas 18% para a fatia dos 50% mais pobres. Paralelamente, mantinha-se estável a concentração de renda para o 1% mais rico, entre 22% e 25%. À medida que descemos aos detalhes, verificamos que as diferenças são cruéis para os estratos historicamente mais vulneráveis da sociedade: segundo dados do Ipea, as mulheres ainda ganham 38% menos que os homens; e os negros, 43% menos que os brancos. Essas diferenças podem ser extrapoladas de acordo com outros cortes, como o regional.

Entre os países para os quais existem dados disponíveis, o Brasil é o que mais concentra renda no 1% mais rico, com o 3º pior índice de Gini (de concentração de renda) na América Latina e Caribe e, segundo o Pnud, o 10º mais desigual do mundo, entre 140 países.

O espaço é pequeno para maiores reflexões, mas é muito relevante destacar que há um número crescente de economistas que consideram a concentração obstáculo decisivo ao desenvolvimento. Numa sociedade como a brasileira, a tendência é que as características atuais inibam o processo de circulação da renda e esterilizem a riqueza, num verdadeiro círculo vicioso que levaria à exclusão crescente da maior parte da população.

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» ROBERTO BOCACCIO PISCITELLI

Professor da Universidade de Brasília