Valor econômico, v. 17, n. 4350, 28/09/2017. Brasil, p. A7.

 

 

Especialistas questionam efeito na regra de ouro

Fernando Torres

28/09/2017

 

 

O aspecto mais polêmico envolvendo a devolução de mais R$ 180 bilhões do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) à União não é a disponibilidade financeira ou não do banco para antecipar o pagamento, mas a forma da entrada desses recursos na contabilidade do Tesouro Nacional, segundo especialistas na área.

O pagamento antecipado de R$ 113 bilhões feito ano passado (inclusive a parcela feita em títulos públicos) foi registrado como "receita de capital" da União, e o mesmo tratamento deve ser dados às transferências a serem realizadas este ano e em 2018 pelo BNDES.

Ao contabilizar o pagamento antecipado como "receita de capital", e usando os recursos em seguida para abatimento da dívida bruta, o governo acredita que está cumprindo a chamada "regra de ouro", que proíbe o Executivo de captar dívida em valor superior à despesa de capital. O objetivo dessa regra é impedir que se amplie o endividamento para custeio de despesas correntes, a não ser que haja autorização da maioria dos parlamentares do Congresso Nacional. Ao usar algumas dezenas de bilhões devolvidos para amortizar a dívida antiga (e assim aumentar as despesas de capital), o Tesouro cria espaço para emitir mais títulos, e gastar livremente.

Ocorre que, quando o Tesouro captou esses recursos e repassou ao BNDES, a operação não foi tratada como despesa de capital - e foi neutra para o cálculo da regra de ouro. Quando o dinheiro transita na mão inversa, por que o tratamento seria diferente? Essa é a questão que apresentam especialistas em contas públicas.

Os créditos extraordinários de mais de R$ 400 bilhões repassados ao banco de fomento entre 2009 e 2014, por terem sido feitos em títulos públicos, foram tratados como despesa extraorçamentária, explica o economista José Roberto Afonso. Mesmo que tivesse constado do orçamento, o efeito teria sido neutro, com lançamento de um empréstimo contra uma despesa de capital de mesmo valor.

No caminho contrário, o tratamento estaria sendo distinto.

Embora a realidade atual não seja essa, suponha-se um cenário em que, no fim do ano, o governo se vê próximo de violar a regra de ouro. O que o impediria de emitir dívida, repassar ao BNDES, exigir que o banco devolvesse o dinheiro em seguida e registrasse a entrada do valor como "receita de capital"?

A pergunta é pertinente porque, se a devolução de R$ 130 bilhões é considerada indispensável dentro do governo para se cumprir a regra de ouro no ano que vem, qual será a solução buscada nos anos seguintes, quando acabar a dívida que o BNDES tem com o Tesouro?

"A única diferença para governo passado é que antes se inventava receita primária, agora se inventa receita financeira", afirma Afonso, que apelidou essa ciranda financeira de "pedalada dourada". Para ele, o governo passou a recorrer ao BNDES para cumprir a regra de ouro porque tem menos espaço para fazer manobra semelhante com o lucro que o Banco Central vinha obtendo com o efeito cambial sobre as reservas internacionais.

Leonardo Ribeiro, assessor do Senado e especialista em contas públicas, tem visão semelhante. "Acho esse ponto essencial e problemático: tratar devolução de operação de crédito por parte de bancos públicos como alternativa para driblar a regra de ouro."

Para ambos, a alternativa do governo seria ser transparente sobre o nível de descontrole fiscal e buscar a solução prevista na Constituição, que é pedir autorização do Congresso para poder emitir dívida excepcionalmente para financiar gastos correntes.

Para uma fonte próxima ao Tribunal de Conta da União (TCU) consultada pelo Valor, o problema estaria na contabilização original do repasse feito pelo Tesouro ao BNDES. "O erro foi na ida não ter passado pelo orçamento e não ter sido considerado despesa de capital", diz a fonte. Até por isso o TCU abriu uma representação no fim de 2015 para investigar a regularidade da emissão direta de títulos do Tesouro para o BNDES. Para essa fonte, a maneira de impedir o governo de "fabricar receita de capital" no futuro é impedir essas operações desde o nascedouro.

Procurado, o TCU mencionou o processo que investiga a ida do dinheiro e também citou mensagem enviada pelo ministro Vital do Rêgo ao plenário na semana passada, alertando sobre a importância de o órgão acompanhar o caso, e inclusive o efeito na regra de ouro.

Para Ribeiro, a contabilização como receita de capital também não está incorreta em si. Mas ele acredita que, a bem da essência do que se pretendia cumprir com a regra de ouro, deveria haver um inciso a mais na resolução nº 48 do Senado, de 2007, que regulamenta o cálculo desse limitador, dizendo algo como: "não serão consideradas despesas de capital, para fins de regra de ouro, aquelas realizadas com receitas provenientes de devolução de operações de créditos anteriormente realizadas".

Questionado sobre a coerência de tratamento no retorno dos recursos, bem como se contabilização prevista atende a essência da regra de ouro, o Tesouro diz que vai tratar desse assunto hoje, quando divulgará o resultado primário.