Correio braziliense, n. 19965, 21/01/2018. Política, p. 4

 

Crime longe do castigo 

Leonardo Cavalcanti 

21/01/2018

 

 

FAKE NEWS, A VERDADE SOB ATAQUE

No terceiro e quarto capítulos da reportagem especial sobre memórias de três mercenários — como são conhecidos os produtores de fake news —, o Correio revela as engrenagens da confecção das notícias falsas e a dificuldade de autoridades em coibir o crime na internet. Com a garantia de anonimato, eles concordaram em contar segredos da guerra na rede. Um dos contatos foi feito em Brasília ao longo de 20 horas, divididas em cinco conversas, outro, numa cidade de Goiás. Um terceiro confirmou informações a partir de ligações telefônicas. Os homens são identificados a partir de letras (das primeiras letras de fake news) e números. O maior problema dos investigadores é a legislação, hoje defasada e incapaz de acompanhar a trama e a especialização dos mercenários. Para os especialistas ouvidos pela reportagem, o Brasil está despreparado para combater o crime durante as campanhas políticas, mas, pelo menos por ora, parecemos estar longe do jogo de interesse internacional, como no caso da interferência russa nas eleições norte-americanas. Por ora.

 

Capítulo III

(As buscas)

Existem histórias sem rastros. Nos últimos meses da última campanha presidencial no Brasil, FN001 dormia apenas duas noites no mesmo hotel. As trocas constantes de endereços eram uma precaução envolvendo a segurança do mercenário, que levava sempre na mochila o computador. Um simples notebook, descartável, que pode ser adquirido no mercado por R$ 1,5 mil. A máquina servia apenas para se conectar a redes sem fio, mas uma apreensão poderia, nunca se sabe, complicar o candidato que contratou FN001 a peso de ouro.

O mercenário, durante uma conversa com a reportagem do Correio, em Brasília, demonstrou impaciência com os “amadores”. “Há guerrilheiros mais afoitos que acabam deixando rastros ao usar programas, por causa dos dados EXIF”, disse-me ele, que recusa a alcunha de mercenário, preferindo ser identificado como alguém mais ideológico. É uma farsa, o que move o trabalho desses homens, especializados em comunicação e tecnologia, é o dinheiro. Os tais dados abrem a possibilidade de alguém identificar o local onde a foto foi tirada. “A máquina fotográfica grava dados como ISO, abertura, velocidade... Quando grava uma imagem com um Photoshop, ele pode incluir dados que foram usados por quem instalou o programa e desmascarar o produtor de fake news.”

Mesmo com a dificuldade de investigação, alguns mercenários amadores caem na rede dos investigadores. Foi o caso de um empresário do Espírito Santo, indiciado por crime de divulgação de pesquisa fraudulenta. A apuração da Polícia Federal foi iniciada por causa da falsificação de página de um jornal na internet. A fake news revelava um levantamento fraudulento. O caso, com investigação do início ao fim, é tão raro que vai servir de modelo para a força-tarefa criada pelo ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal (STF), com a PF e o Ministério Público. Mas todos sabem das dificuldades de caçar um mercenário.

— Há uma sofisticação e uma complexidade nas fake news que tornam as investigações e as próprias punições complexas.

Evandro Lorens, diretor da Associação Nacional dos Peritos Criminais Federais (APCF), é uma figura tranquila, mas não confunda tal qualidade com a resignação. Especialista em arquitetura e segurança da informação, Lorens afirma que ainda há uma imaturidade no país para tratar do tema, mas acredita que investigadores e a própria sociedade serão capazes de evoluir no combate às fake news. Ele traça um paralelo com as primeiras apurações sobre os casos de pedofilia na internet.

No início das apurações sobre os crimes de pedofilia na rede, os peritos não conseguiam avançar porque a legislação apenas autorizava o flagrante no momento da transmissão das imagens das crianças. “Isso complicava muito a apuração. A gente tentava fazer a interceptação, avançava, mesmo com eles usando o proxy, mas não conseguia prender”, lembrou Lorens. Tal ferramenta, o proxy, é usada para criptografar dados e mascarar os protocolos de internet (IP), que identificariam a conexão e o conteúdo das informações. “Mesmo com as buscas e apreensões, o cara não era preso e sumia no mundo, pois o armazenamento do conteúdo pornográfico não era considerado crime.”

O avanço ocorreu com alterações na legislação. O armazenamento de vídeos e imagens passou a ser considerado crime. “Demos a última volta no parafuso com o desenvolvimento de tecnologia, que permitiu a análise dos computadores ainda na residência do criminoso”, afirmou Lorens. Em vários momentos, como no caso do combate à pedofilia, as ferramentas são desenvolvidas pelos próprios peritos. De volta às fake news, ainda estamos longe de avanços, o que faz com que Lorens acredite no desenvolvimento da própria sociedade para se proteger das notícias falsas montadas pelos mercenários.

A própria legislação é antiquada, com leis das décadas de 1940 e 1960, dos códigos Penal e Eleitoral, respectivamente. A mais recente, de segurança nacional, é dos anos 1980, completamente defasada no quesito crimes virtuais. O marco civil da internet, como é chamada a Lei N° 12.965/14, sancionada por Dilma Rousseff, também não ajuda os investigadores.

“Todos têm lados, inclusive juízes. Qual a chance real de uma ação efetiva contra uma campanha presidencial se um magistrado não estiver preparado para perceber o estrago de uma fake news, e simplesmente desconsiderar as apurações”, questionou um investigador federal que preferiu não se identificar. “A força-tarefa vai servir para amedrontar os amadores, que vão pensar duas vezes antes de tentaram produzir fake news. Os profissionais continuarão no jogo.”

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Entrevista - Misha Glenny

21/01/2018

 

 

“O Brasil não está pronto para o combate”

O escritor inglês Misha Glenny, 59 anos, apura os movimentos de criminosos na internet. Autor dos livros Mercado sombrio e McMáfia, ele expõe o universo do cibercrime para o leitor comum, com todas as implicações e riscos tanto para os Estados como para a vida privada do cidadão. Se a internet mudou o cotidiano das pessoas, também as deixou reféns a golpes de todos os tipos, a partir de e-mails, aplicativos de mensagens instantâneas e notícias falsas, um tema que cada vez mais é alvo de preocupações de Glenny, que conversou com o Correio por Skype, desde Londres, onde vive. Entre os próximos meses de maio e abril, o escritor vem ao Brasil para revisitar a favela da Rocinha, cenário do mais recente livro, O dono do morro — um homem e a batalha pelo Rio, lançado em 2016.

 

O Brasil está preparado para combater as fake news?

Não, eu não acho que o Brasil está preparado de maneira alguma. O país tem muitos usuários de internet competentes, muitos bons engenheiros de softwares, mas as estruturas governamentais do país são subdesenvolvidas. Mesmo quando você olha para os Estados Unidos e para o Reino Unido e o estrago que as notícias falsas causaram nestes países, filtros e barreiras sofisticados estão falhando, e esses artifícios não existem no Brasil. A única vantagem significante do Brasil em relação às fake news é a língua portuguesa, porque os brasileiros conseguem perceber quando algo não foi escrito em português correto. Mas em termos de infraestrutura de proteção contra as fake news, o Brasil não está em uma posição muito favorável.

 

Qual o grau da influência russa nas eleições de Donald Trump?

O que acontece é que a situação econômica da Rússia é 10 vezes pior do que a norte-americana. Não dá para competir com armas convencionais e nem com armas cibernéticas. Então, é necessário usar as armas que se tem. E os russos perceberam as fraquezas do sistema democrático dos EUA e da Europa, e como as fake news são um meio artificial muito barato e eles criaram incertezas entre a sua proteção, competidores e inimigos.

 

Qual é a responsabilidade de empresas?

Facebook e o Google são editores, apesar de eles dizerem que apenas fornecem manchetes para uma audiência completamente aberta. Mas eles precisam começar a assumir responsabilidades sobre o conteúdo, como os jornais, inclusive os ao vivo, têm.

 

Como grupos da sociedade civil podem combater as fake news?

Isso é muito complicado pelo fato de as fake news se espalharem em uma variedade muito grande de websites. Então, acho isso uma armadilha. Não tenho certeza sobre o que a sociedade civil pode fazer sobre isso. Eu diria que isso está mais provavelmente no nível governamental.

 

Como combater as fake news sem atingir a liberdade de expressão?

A princípio, as leis de informações deveriam existir também para a internet. Na prática, isso não acontece. E o que você percebe é um debate muito polarizado. O nível de debate on-line é extremamente agressivo e essa, para mim, é maior preocupação. Até mais que as fake news, e, claro, elas estão relacionadas. E as leis aplicadas pela mídia no jornalismo impresso não parece ser utilizada nas mídias sociais. No Reino Unido, houve um aumento de processos contra indivíduos em redes sociais. A polícia tem percebido isso como uma área problemática.

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À espera da eleição

21/01/2018

 

 

Capítulo IV

(A salvação)

Não se produz fake news do dia para a noite. Todo o trabalho leva meses. Isso significa que a preparação de um determinado produto deve ser feita ainda no início do ano eleitoral. Neste momento, há grupos rastreando endereços de e-mails e números de telefones. Não duvide, por exemplo, se o celular começar a tocar sem que alguém fale do outro lado da linha, e tudo não passe de testes de uma empresa de disparos de WhatsApp. O endereço do e-mail pessoal esqueça, este já foi rastreado uma centena de vezes.

Mercenários profissionais começam a montar os exércitos de fake news meses antes de uma eleição. Para que pareçam minimamente reais, têm de ser feitos quase manualmente, mesmo com dados e fotos falsas dos usuários, num processo longo de adicionar amigos, curtir páginas — todas aquelas tarefas realizadas pelo cidadão comum dentro da rede social. A partir de impulsionamentos no Facebook, gente contratada por mercenários inicia a manipulação dos falsos perfis, que dão “bom dia”, vão a restaurantes, supermercados e, por fim, espalham as fake news. Na prática, aquele amigo pode não existir, mas tem chances de influenciar alguém. Mas essa é apenas uma parte menor da estratégia. O conjunto do trabalho do mercenário é que faz a diferença.

Umas das ações dos mercenários envolve a mineração de e-mails e números de telefone, depois da compra de grandes lotes de endereços no mercado paralelo de dados. A venda é feita a funcionários corruptos de grandes empresas comerciais, que repassam os cadastros de clientes. O próprio FN003 explica: “Depois de receber todos aqueles dados, é preciso minerá-los. Ou seja, é preciso saber, por exemplo, se os e-mails estão ativos”. A tarefa é fundamental para evitar que os disparos das fake news caíam nas caixas de spam, o que inviabilizaria toda a estratégia. Para o sucesso da operação, é preciso combinar ações específicas para e-mails, Facebook e WhatsApp.

O planejamento é feito com tempo e dinheiro. As operações mais efetivas são tão bem pensadas que chegam a enganar os militantes mais ferrenhos de partidos. FN003 lembra-se da montagem de um site com as cores principais de uma legenda. Ali, ele passou a anexar artigos e exultar, a partir de palavras de ordem, “convertidos” a defenderem causas que o próprio candidato queria isolar na campanha por saber que perderia votos entre eleitores ainda indecisos. A página, com indexação eficiente, ganhou corações e mentes dos militantes mais combativos. O mercenário a partir daí começou a radicalizar o discurso, confundindo os próprios marqueteiros do time adversário.

Fábio Malini, professor da Universidade Federal do Espírito Santo e coordenador do Laboratório sobre Imagem e Cibercultura (Labic), acredita que a incerteza do cenário eleitoral brasileiro neste momento estimula a produção das fake news. Ele compara o período de campanha deste ano com a greve da Polícia Militar do Espírito Santo, em fevereiro do ano passado, e avalia que foi ainda mais dramática por causa da quantidade de notícias falsas que circulou durante a paralisação.

“Naquele momento havia um clima de incerteza e uma ambiguidade das próprias autoridades”, afirmou Malini. “De certa forma, as eleições de outubro apresentam esse vazio, um jogo jogado nas sombras, em que os próprios políticos não sabem qual o futuro. Não há a menor dúvida que será um ambiente fértil para as fake news”, completou.

 

Risco externo

Se a guerra entre os candidatos será repleta de fake news, o Brasil ainda parece estar livre de ataques de fora, como ocorreu nos Estados Unidos. “Não acredito que não exista aqui um interesse internacional para se movimentar uma estrutura daquelas para interferir na eleição daqui. Agora, que a gente vai ter uma enxurrada de fake news interna, não há a menor dúvida”, afirmou Eugênio Ricas, diretor de Investigação e Combate ao Crime Organizado da Polícia Federal.

Na última sexta-feira, Ricas se encontrou com o representante do FBI, a agência norte-americana responsável por crimes federais. A corporação atua nas investigações sobre os ataque dos russos na última eleição que elegeu Donald Trump. Integrantes da Polícia Federal e do FBI iniciaram conversas para um acordo de cooperação e troca de informações. Tal ação deve municiar os agentes brasileiros para trabalharem durante a campanha brasileira, na tentativa de caçar os mercenários.

A primeira experiência de Ricas com ataques coordenados de fake news também ocorreu na greve da PM do Espírito Santo, no ano passado. A metralhadora digital de mercenários foi apontada para o policial. Naquele período, Ricas era secretário de Justiça do estado. “A quantidade de fake news era surreal, uma coisa criminosa contra a sociedade.” Na manhã de sábado de carnaval, ele deu uma entrevista contra “o terrorismo” de Estado. Menos de quatro horas depois, Ricas e parte da família foram vítimas de um doxing, como é chamada a prática virtual de pesquisar e distribuir de forma viral os dados pessoais de alguém. As investigações do crime ainda estão em andamento, com pistas apontando para políticos e até mesmo para o lobby da indústria armamentista.

Em entrevista ao Correio, o escritor Misha Glenny, autor de Mercado sombrio — o crime e você (Companhia das Letras), afirma que o Brasil não está preparado para a guerra. “Quando você olha para os Estados Unidos e para o Reino Unido, você percebe que, mesmo filtros e barreiras sofisticados, falharam”, disse ele. “E o Brasil não tem nem mesmo esses artifícios.” Glenny vê uma única vantagem a nosso favor em relação ao combate às fake news. “A única vantagem significante do Brasil em relação às fake news é a língua portuguesa. Os brasileiros conseguem perceber quando algo não foi escrito em português corretamente”, afirmou ele. “Mas, em termos de infraestrutura de proteção contra as fake news, o Brasil não está em uma posição muito favorável.” Que venham as eleições. (LC)