O globo, n. 30836, 09/01/2018. Economia, p. 15

 

Mudança adiada

Martha Beck, Eliane Oliveira e Letícia Fernandes

09/01/2018

 

 

Governo decide deixar discussão sobre regra fiscal para depois da reforma da Previdência

Diante da repercussão negativa provocada pela notícia de que a equipe econômica estaria estudando uma flexibilização da regra de ouro — que proíbe o governo de se endividar para pagar despesas correntes, como folha de salários — o presidente Michel Temer decidiu adiar o debate. Logo pela manhã, ele convocou a equipe econômica e mandou os ministros da Fazenda, Henrique Meirelles, e do Planejamento, Dyogo Oliveira, darem dois recados ao mercado. O primeiro deles é que nada será discutido antes da reforma da Previdência. E o segundo é que qualquer mudança não envolverá uma simples suspensão da regra de ouro. Será preciso criar um mecanismo de ajuste automático nos gastos públicos quando a norma, que está prevista na Constituição, for descumprida. Com isso, o Palácio do Planalto espera acalmar investidores que ficaram preocupados com a gestão das contas públicas.

— A orientação do presidente confirma aquilo que já tínhamos adiantado, que não deve haver flexibilização ou suspensão pura e simples. O que podemos estudar, no momento adequado, são regras de autoajustamento, como, por exemplo, o que já foi colocado pelo teto de gastos. Acionamento automático de mecanismos ajustáveis — disse Meirelles em entrevista convocada depois da reunião com o presidente.

Ele destacou que não há qualquer risco de descumprimento da regra em 2018 e que o foco agora tem que ser de trabalho pela aprovação da reforma da Previdência. Já o ministro do Planejamento destacou que a dificuldade do governo para honrar a regra ocorre justamente porque o país tem despesas obrigatórias muito elevadas, especialmente com o pagamento de aposentadorias.

MAL-ESTAR ENTRE MEIRELLES E MAIA

A Constituição prevê que as operações de crédito do governo não podem ser maiores que as despesas com investimentos. Isso serve justamente para que o governo não emita dívida para pagar despesas correntes. O problema é que a crise fiscal gerou um quadro em que o governo tem endividamento e gastos correntes elevados e investimentos baixos.

— O que achamos é que (mudar a regra de ouro) não é uma discussão adequada para este momento. Agora, nós estamos focados na Previdência — disse Meirelles.

Oliveira lembrou que a discussão deve ser retomada este ano por causa do Orçamento de 2019:

— O que afeta a regra de ouro é o fato de que o nosso déficit fiscal é gerado pelo déficit da Previdência. O que temos que fazer é tratar da maior despesa do governo, que é a despesa com Previdência. É isso que ajuda a resolver o problema da regra de ouro.

A reunião de Temer com a equipe econômica também foi uma forma de colocar panos quentes sobre o mal-estar que a discussão fiscal gerou entre Meirelles e o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), ambos interessados em disputar as eleições para presidente. Na semana passada, a equipe econômica chegou a começar a discutir ajustes na regra de ouro na casa de Maia com o deputado Pedro Paulo (PMDB-RJ), que trabalha numa Proposta de Emenda à Constituição (PEC) para reduzir o engessamento do Orçamento no país.

No entanto, logo em seguida, Meirelles disse que o ideal não seria flexibilizar a regra. Maia interpretou isso como uma tentativa da equipe econômica de jogar o assunto no colo do Congresso e afirmou publicamente que, diante disso, não colocaria nenhuma alteração na regra de ouro em votação no Congresso.

Durante a entrevista ontem, Meirelles tentou afastar a ideia de que a equipe econômica está em conflito com o Congresso:

— Não me parece que existam divergências. (...) A definição da pauta é do presidente da Câmara.

Já Maia, perguntado se estaria orientando Pedro Paulo a não incluir a regra de ouro em sua PEC, afirmou que o tema jamais esteve na proposta de emenda à Constituição:

— Nunca esteve. Foi coisa da equipe econômica. Como eles estão divididos, vamos tratar da PEC das despesas obrigatórias.

DESEQUILÍBRIO DE ATÉ R$ 200 BI EM 2019

O ministro do Planejamento explicou que o governo precisa debater a regra de ouro porque ela corre o risco de ser descumprida a partir de 2019. Segundo Oliveira, o desequilíbrio previsto no Orçamento do ano que vem está estimado entre R$ 150 bilhões e R$ 200 bilhões. Sem algum tipo de ajuste, o governo teria que encaminhar projeto de lei ao Congresso prevendo um corte de gastos nesse valor, sendo que isso é impossível. As despesas passíveis de contingenciamento (discricionárias) estão pouco acima de R$ 100 bilhões.

— Se você cortar toda a despesa discricionária do governo, ela é um pouco maior que R$ 100 bilhões. Se a gente cortasse tudo, ainda assim, não seria a solução — disse Oliveira.

Meirelles e Dyogo asseguraram que não há risco de descumprimento da regra de ouro em 2018, pois o governo já negociou com o BNDES a devolução de R$ 130 bilhões ao Tesouro. Esses recursos serão usados para reduzir o rombo nas contas públicas.

Diante do risco para o ano que vem, Temer pediu à equipe econômica que encontre alternativas para quando for enviado ao Congresso o Orçamento de 2019, o que tem de acontecer em agosto. Segundo interlocutores do Planalto, embora a equipe econômica tenha começado a debater o assunto com Pedro Paulo, Temer ainda não havia se posicionado sobre o assunto.

— Essa especulação sobre a regra de ouro começou sem que Temer tivesse fechado uma posição. Por conta disso, ele chamou uma reunião e pediu que a equipe econômica estude uma alternativa para cumprir o Orçamento de 2019, mas sem flexibilizar a regra — disse um aliado do presidente.

Apesar do otimismo da equipe econômica em relação ao fechamento das contas de 2018, Pedro Paulo alertou que o adiamento do debate sobre a regra de ouro vai obrigar o governo a tomar medidas amargas ainda este ano. Segundo ele, não haverá problemas apenas em 2019.

— O ano de 2017 foi fechado com muita dificuldade, e este ano não será diferente. Do total do Orçamento, só 9,5% são despesas discricionárias, o resto é obrigatório. E não adianta dizer que o problema está resolvido porque o BNDES vai repassar R$ 130 bilhões ao Tesouro. Há um furo de R$ 182 bilhões — afirmou o deputado.

Meirelles também disse ontem que, apesar de o país ter três âncoras fiscais (teto de gastos, meta de resultado primário e regra de ouro), não se pode abrir mão de nenhuma delas:

— As três âncoras são importantes. A regra de ouro basicamente estabelece limites para o crescimento da dívida, mas não é específica em relação às despesas. Para isso, existe o teto. E a meta de primário é um resultado para o ano.

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"Sem ajuste, 2019 pode ter apagão de serviço público"

Margarida Gutierrez e Marcello Corrêa

09/01/2018

 

 

Para especialista, debate sobre medida só reforça urgência de votar alterações na aposentadoria

Como vê a mudança do governo em relação à flexibilização da regra de ouro?

O que se discute é que não faz sentido flexibilizar a regra de ouro sem punição. A ideia do Meirelles é flexibilizar a regra de ouro e, cada vez que ela fosse flexibilizada, despesas obrigatórias deixariam de ser obrigatórias. Não sei até que ponto é boa, mas talvez seja viável. O risco dessa proposta é dizer que vai se comprometer e, na hora, acabar não conseguindo cumprir. Acontece a mesma coisa com a PEC do teto de gastos, que pode não ser cumprida em 2019. É importante lembrar que pode até flexibilizar a regra como uma maneira de garantir que a coisa não vai explodir, mas tem o gasto previdenciário, que é uma bomba-relógio.

A devolução dos R$ 130 bilhões do BNDES resolve o problema?

Vai dar uma folga, porque isso permite abater dívidas e com isso ganhar fôlego para a regra de ouro. É uma receita que financia uma despesa. Mas depois não tem. O problema começa em 2019.

Que alternativas o governo tem sem flexibilizar a regra?

A alternativa é fazer uso do caixa único do Tesouro, o que o governo já tem feito. Uma parte dessa conta é dinheiro carimbado, mas uma parte significativa é formada por recursos que o governo pode usar para abater a dívida pública em determinados momentos e eventualmente pagar despesas correntes. Se o governo está tão preocupado com 2019 e quer flexibilizar a regra de ouro é porque, provavelmente, os recursos disponíveis hoje não serão suficientes para pagar a despesa corrente.

Se esses recursos também estão no fim, o que pode acontecer em 2019?

Sem isso, pode ter apagão dos serviços públicos e começar a não pagar aposentados, por exemplo, como a gente já começou a ver nos estados. (A prioridade) é cumprir a regra de ouro, que está na Constituição. Se não tem dinheiro, não tem.

Como esse debate afeta a questão da reforma da Previdência?

Coloca mais premência sobre a necessidade de votar a reforma. Não é a reforma do Temer, é da sociedade. É impossível o país viver assim. No Brasil, temos regras previdenciárias que são um ponto fora da curva no mundo.