O globo, n. 30810, 14/12/2017. País, p. 3

 

Os limites da polícia

André de Souza e Renata Mariz

14/12/2017

 

 

Maioria do Supremo quer impor alguma restrição a negociações fechadas por delegados

-BRASÍLIA- A maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) quer impor algum tipo de restrição, maior ou menor, à possibilidade de a polícia fechar um acordo de delação premiada. O julgamento foi interrompido após sete dos 11 integrantes da Corte terem votado. Apesar de seis deles terem apresentado algum tipo de restrição, cada um se manifestou de forma diferente. Assim, não há maioria clara para a definição de quais serão esses limites impostos à Polícia Federal e às polícias civis, e o impasse precisará ser resolvido provavelmente na sessão de hoje, quando o julgamento será retomado. Até agora, apenas o relator, Marco Aurélio Mello, não limitou em nenhuma medida a atuação da polícia. E somente Edson Fachin foi totalmente contrário à possibilidade de um delegado fechar delação.

A ação em análise no STF foi proposta no ano passado pelo então procurador-geral da República, Rodrigo Janot, para quem somente o Ministério Público (MP) pode fechar uma delação. Ele pediu que os acordos já firmados tivessem sua validade mantida, para não atrapalhar as investigações em curso. Atual procuradora-geral, Raquel Dodge, ratificou essa posição ontem.

O argumento de Janot e Dodge é que a polícia não pode assegurar ao delator a diminuição da pena ou perdão judicial, medidas que só podem ser propostas pelo MP, titular da ação penal no Brasil. O delator fecharia assim um acordo sem garantias de seu cumprimento, uma vez que tudo poderia ser ignorado pelo MP. Marco Aurélio, relator do caso, rebateu. Para ele, um delegado pode firmar acordo, que depois passaria pelo controle de um juiz.

— A representação pelo perdão judicial feita pelo delegado de polícia em acordo de colaboração premiada, ouvido o Ministério Público, não é causa impeditiva do oferecimento da denúncia pelo órgão acusador (Ministério Público). Uma vez comprovada a eficácia do acordo, será extinta pelo juiz a punibilidade — afirmou Marco Aurélio, criticando a concentração de atribuições em um só órgão, no caso o MP. Alexandre de Moraes foi o segundo a votar. Ele também se mostrou a favor da possibilidade de a polícia fechar delações, mas com uma ressalva. Para Moraes, um delegado não pode oferecer perdão judicial, a não ser que haja concordância do MP. O ministro Dias Toffoli também entendeu que a polícia não precisa de aval do Ministério Público, mas, por outro lado, avaliou que um delegado não pode estabelecer penas e benefícios, apenas sugeri-las ao juiz. — À polícia, entendo eu que não compete negociar regime de execução de pena, benefícios. Agora seria vedado à polícia fazer acordo? Penso que não — disse Dias Toffoli.

“SE MP DISSER SIM, É TALVEZ”

Para Rosa Weber e Luiz Fux, a polícia precisa sempre da anuência do Ministério Público para fechar um acordo. Luís Roberto Barroso entende que esse aval é necessário no caso de negociação de penas e benefícios. — Se o Ministério Público disser sim, é talvez, depende do juiz. Se disser não, é não — resumiu Fux.

Fachin, que é relator dos processos da Lava-Jato no STF, votou contra a possibilidade de a polícia fechar delação. Ele disse que, segundo a Constituição, somente o MP pode apresentar denúncia e estabelecer os termos do pacto negociado. A polícia até pode atuar na construção da delação premiada, fazendo, por exemplo, “pré-validação da relevância das informações a serem prestadas pelo pretenso colaborador”, mas nunca formalizar os acordos. A opinião da autoridade policial teria caráter “meramente opinativo”.

Fachin condenou ainda o comportamento de candidatos a delatores que buscam na polícia um acordo de colaboração após serem rejeitados pelo MP. Ele não citou nomes, mas é o caso, por exemplo, do marqueteiro Duda Mendonça.

— O acordo em âmbito policial não pode se transformar numa nova oportunidade para que o candidato a colaborador, cujos elementos de convicção de que dispunha tenham sido considerados insuficientes por um agente estatal, possa submeter sua proposta a uma segunda análise — argumentou Edson Fachin.

Entre os acordos de delação premiada fechados pela polícia estão o de Duda Mendonça; o de Marcos Valério, operador do mensalão; e o da publicitária Danielle Fonteles, investigada na Operação Acrônimo. Desses casos, apenas o de Danielle foi homologado pela Justiça. A Procuradoria-Geral da República (PGR) não detalhou se é a favor da manutenção apenas dos acordo homologados, ou também daqueles já firmados mas ainda sem aval da Justiça.

Ainda faltam os votos dos ministros Celso de Mello e Cármen Lúcia. Gilmar Mendes está em viagem aos Estados Unidos e não voltará a tempo de participar da sessão de hoje. Já Ricardo Lewandowski está de licença médica. Ontem, antes de os ministros começarem a votar, Raquel Dodge foi contra a possibilidade de a polícia fechar delações, enquanto a ministra da Advocacia-Geral da União (AGU), Grace Mendonça, se manifestou favoravelmente.

— A participação dos delegados na elaboração de um acordo pode ir até determinado ponto: de coleta de depoimentos, de localizar os depoentes, de incluí-los no processo de obtenção da prova. No entanto, firmar o acordo, pactuar cláusulas, notadamente as que se referem ao prêmio, sem as quais não há acordo, estão no domínio do titular da ação — disse Dodge. — O delegado apenas propõe o acordo. Quem decide é a autoridade judicial — discordou Grace.

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Risco agora é de incerteza jurídica para delatores

Cleide Carvalho

14/12/2017

 

 

Lava-Jato não revelaria tantos crimes se os colaboradores não tivessem certeza de que suas penas seriam muito mais brandas

Os limites sugeridos pelos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) a acordos de delação negociados pela Polícia Federal (PF) não põem fim à disputa entre a PF e o Ministério Público Federal (MPF). Entre os envolvido na Lava-Jato, a impressão é que esses limites vão resultar em incerteza jurídica para os delatores. Não houve consenso entre os ministros da Corte e, por enquanto, prevalece a tese de que qualquer acerto feito pelas polícias deve passar pelo crivo do MPF, que pode inclusive vetar benefícios sugeridos a quem se dispõe a falar. Embora a última palavra sempre seja da Justiça — não cabe nem ao Ministério Público Federal nem à polícia determinar a pena do delator e como ela será executada — a Lava-Jato dificilmente revelaria o esquema de corrupção na Petrobras, em todo seu alcance, sem que os colaboradores tivessem a certeza de que, ao expor a regra do jogo, suas penalidades seriam muito mais brandas.

Nas sentenças, o juiz Sergio Moro costuma seguir os termos acordados e ressalta que isso é necessário para não colocar em dúvida o mecanismo das colaborações. A Lava-Jato tem hoje 163 acordos firmados no âmbito das investigações da Petrobras. Se considerar as demais delações feitas diretamente pela Procuradoria-Geral da República, que envolvem outros casos, como JBS, o número beira 300. Poucos negociaram apenas com a Polícia Federal. Em Curitiba, a doleira Nelma Kodama fechou acordo com a PF e foi libertada, mas o acerto foi parcialmente revisto pelo Ministério Público Federal, que obteve mais informações.Diferentemente das revelações do doleiro Alberto Youssef, que ajudaram a sustentar dezenas de inquéritos e denúncias à Justiça, as da doleira, conhecida por guardar dinheiro na calcinha e usar pseudônimos como Greta Garbo e Angelina Jolie, ainda estão envoltas em sigilo de Justiça.

Condenada a 18 anos, Nelma deixou a prisão em junho de 2016 e até agora não há uma denúncia feita a partir de sua delação. Ela não foi ouvida como testemunha em nenhuma das ações em curso na 13ª Vara Federal de Curitiba.Para os investigadores da Lava-Jato, porém, a questão maior não está na disputa entre procuradores e delegados federais. Ao decidir sobre o poder da polícia de negociar acordos, o STF está decidindo também sobre acertos a serem negociados pelas polícias civis de todo o país. Se a PF é atrelada ao Executivo e sua independência, apesar do profissionalismo, pode ser questionada, o que se dirá das polícias civis, que têm mais risco de sofrer pressões políticas locais?