O globo, n. 30794, 28/12/2017. País, p. 3

 

Para Dodge, 'indulto arbitrário' 

Vinicius Sassine 

28/12/2017

 

 

“Não é dado ao presidente da República extinguir penas indiscriminadamente, como se seu poder não tivesse limites: e o limite do seu poder, no caso de indulto, é o livre exercício da função penal pelo Poder Judiciário, encarregado de aplicar a lei ao caso concreto e, assim, produzir os efeitos esperados do Direito Penal” Raquel Dodge Raquel Dodge Procuradora-geral da República

“Não há prejuízo para a Lava-Jato. O indulto é sempre uma escolha filosófica e humanitária do presidente da República. Não é ato judicial, nem do MP” Torquato Jardim Ministro da Justiça, ao defender o indulto, em entrevista ao GLOBO publicada em 24/12

-BRASÍLIA- Em um texto no qual faz duras críticas ao presidente Michel Temer, a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, ingressou ontem no Supremo Tribunal Federal (STF) com uma ação direta de inconstitucionalidade contra o decreto presidencial que estabeleceu regras mais brandas para a concessão do indulto a presos condenados. Dodge considerou que Temer violou a Constituição ao permitir perdão de multas e penas patrimoniais — e não somente da pena de prisão —, ao viabilizar a paralisação de processos e recursos em andamento e ao extinguir a separação entre os poderes, na medida em que “subordinou” o Judiciário aos efeitos abarcados em seu ato presidencial. O Palácio do Planalto não quis comentar a ação de Dodge. A procuradora-geral chama o ato do presidente de “arbitrário”, “inconstitucional” e “indiscriminado”, e afirma que ele favorece a impunidade, beneficia condenados por crimes de corrupção e é inválido sob a ótica da lei. Dodge pede que a presidente do STF, ministra Cármen Lúcia, decida a liminar com a “maior brevidade possível”, antes mesmo de intimar as partes interessadas, diante da “urgência do caso”. Depois, devem ser solicitadas informações à Presidência da República e à Advocacia Geral da União (AGU).

“Discricionariedade não é arbitrariedade, pois esta não tem amparo constitucional, enquanto aquela deve ser usada nos limites da Constituição”, escreveu Dodge na ação de inconstitucionalidade. “Não é dado ao presidente da República extinguir penas indiscriminadamente, como se seu poder não tivesse limites: e o limite do seu poder, no caso de indulto, é o livre exercício da função penal pelo Poder Judiciário, encarregado de aplicar a lei ao caso concreto e, assim, produzir os efeitos esperados do Direito Penal: punir quem cometeu o crime, fazê-lo reparar o dano, inibir práticas semelhantes pelo condenado e por outrem, reabilitar o infrator perante a sociedade.”

Dodge ressalta que, ao editar o decreto do indulto, Temer violou o princípio constitucional da igualdade “por beneficiar muito especialmente determinado grupo de condenados, notadamente aqueles que praticaram crimes contra o patrimônio público”. “O exercício de toda e qualquer competência ou prerrogativa por autoridade, no âmbito da República, deve se orientar pela Constituição, outrossim, sem o que será um ato despido de fundamentação válida e, portanto, arbitrário e inválido. O chefe do Poder Executivo não tem o poder ilimitado de conceder indulto. Na República, nenhum poder é ilimitado.”

Segundo a procuradora, o decreto de Temer se destina a “claramente” favorecer a impunidade, “dispensando do cumprimento da sentença judicial justamente os condenados por crimes que apresentam um alto grau de dano social, com consequências morais e sociais inestimáveis, como é o caso dos crimes de corrupção, de lavagem de dinheiro e outros correlatos”.

Para ela, a impunidade se estenderá à LavaJato e a outras operações que se destinaram ao combate à corrupção: “Essas investigações desbarataram organizações criminosas que assaltaram os cofres públicos, desviaram valores da ordem de bilhões de reais e demandaram investimentos tecnológicos e de recursos humanos de grande vulto por parte do Estado brasileiro para se alcançar os resultados obtidos”, afirmou.

Na última sexta-feira, o presidente Temer publicou o decreto de indulto natalino facilitando a concessão de perdão total da pena a condenados por crimes cometidos sem violência ou ameaça, como corrupção e lavagem de dinheiro. Na norma anterior, só poderiam ser beneficiados os sentenciados a no máximo 12 anos que tivessem cumprido um quarto da pena, se não reincidentes. Desta vez, o tempo de cumprimento diminui para um quinto, independentemente do total da punição estabelecida na condenação.

Editado anualmente, o novo decreto presidencial também beneficia o bolso de condenados que, além da pena de prisão, têm que pagar multas. O texto prevê que o indulto tem efeito sobre as sanções pecuniárias, contrariando uma definição expressa da norma anterior, publicada em 2016, segundo a qual a pena de multa aplicada “não é alcançada pelo indulto”. O benefício é voltado a sentenciados que cumprem a pena em regime aberto ou estejam em livramento condicional.

As regras são publicadas todo ano pelo presidente da República e, com base nelas, as defesas dos condenados pleiteiam na Justiça o benefício. Muitos políticos vêm conseguindo se beneficiar do indulto. A partir do decreto editado em dezembro de 2015 pela ex-presidente Dilma Rousseff, ex-deputados federais condenados no mensalão, como João Paulo Cunha (PT-SP), Roberto Jefferson (PTB-RJ) e Bispo Rodrigues (PR-RJ), tiveram o perdão concedido pelo STF. Neste ano, houve pressão do órgão que assessora o governo na elaboração do documento — o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária — para incluir expressamente a corrupção no rol de crimes não passíveis de indulto. Mas a sugestão não foi atendida.

PARA MORO, ‘GENEROSO’; JÁ DALLAGNOL CITA ‘INTERESSES’

O decreto do indulto foi fortemente criticado pela força-tarefa da Lava-Jato. O juiz federal Sergio Moro chamou o indulto de “generoso” com o crime de corrupção, enquanto o procurador Deltan Dallagnol disse que o decreto “atende a interesses particulares”. A Associação Nacional dos Procuradores da República e o Conselho Federal da OAB também criticaram duramente o texto e ameaçaram ajuizar ações contra o decreto. A Transparência Internacional imediatamente divulgou nota sobre o decreto, manifestando preocupação com o decreto e afirmou que ele “facilita sobremaneira a concessão de perdão total da pena” a condenados por corrupção.