O globo, n. 30903, 17/03/2018. Rio, p. 8

 

No rastro das balas

Antônio Werneck, Marcos Antunes, Rafael Soares, Rodrigo Capelo e Rodrigo Taves

19/03/2018

 

 

Polícia apura se munição usada no assassinato de Marielle foi desviada para milícia

-RIO, BRASÍLIA E SÃO PAULO- Investigadores estão rastreando a distribuição de um lote de munição vendido pela fábrica CBC à Polícia Federal para tentar chegar aos assassinos da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Pedro Gomes. Uma das linhas de apuração do crime, cometido na noite de quarta-feira, aponta para o envolvimento de integrantes de uma milícia da Zona Oeste do Rio. Fontes da PF disseram que muitas balas do lote UZZ-18 chegaram ao Rio para serem usadas em treinamentos de forças de segurança que se preparavam para cuidar de grandes eventos, como os Jogos Panamericanos de 2007, a Copa do Mundo de 2014 e a Olimpíada de 2016. Existe a suspeita de que, no estado, a munição tenha sido desviada durante um desses períodos de preparação de agentes.

Em 2008, Marielle atuou na CPI das Milícias da Assembleia Legislativa como assessora do deputado estadual Marcelo Freixo (do PSOL, mesmo partido dela). O trabalho da comissão resultou no indiciamento de mais de 200 pessoas. Já se sabe que as balas usadas no crime são do lote UZZ-18, que tinha 1,859 milhão de projéteis calibre 9mm. A munição foi distribuída para alguns estados, e parte dela acabou sendo utilizada na Chacina de Osasco, a maior da história do Estado de São Paulo, que resultou na morte de 23 pessoas em 2015; e numa guerra entre traficantes em São Gonçalo, que deixou cinco vítimas no mesmo ano.

PMS PRESOS NA ZONA OESTE

Esta semana, três PMs suspeitos de integrar um grupo paramilitar foram presos em Bangu, acusados de extorsão e porte ilegal de armas. Com eles, foram encontradas três pistolas, sendo duas de calibre 9mm, e aproximadamente 90 projéteis. A munição também faria parte do lote UZZ-18. O ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, lembrou ontem que a Polícia Federal já abriu mais de 50 inquéritos ao longo de 13 anos para tentar descobrir como milhares de balas foram desviadas, mas destacou que pediu empenho total em novas investigações.

— A PF está fazendo todo o seu rastreamento, levantando todos os dados, e vai apresentar muito em breve as conclusões às quais chegou — disse Jungmann, que levantou a possibilidade de o assassinato de Marielle ter sido planejado com o objetivo de abalar a intervenção federal na segurança do

estado. — Se, por hipótese, esse crime foi cometido para confrontar ou abalar a intervenção, isso vai mostrar que ela está no caminho certo, que está levando o crime a reagir. Lembro que já foi preso o chefe das delegacias especializadas (delegado Marcelo Martins, detido na terça-feira pela Operação Lava-Jato sob a acusação de desvio de dinheiro

público),além de um dos responsáveis pelo sistema carcerário e quatro policiais milicianos. Os resultados estão aparecendo. Temos determinação e disposição para ir até o fim.

Jungmann também disse que uma equipe de especialistas em impressões digitais e exames de DNA vem fazendo análises na munição recolhida no local do assassinato de Marielle e Anderson.

PROMOTOR APONTA DIFICULDADES

Há pelo menos cinco anos, balas do lote UZZ-18 estão sendo usadas em crimes, sem que até hoje o rastreamento tenha sido feito. Já se sabe que, em São Paulo, a munição foi utilizada em uma chacina e em dois assassinatos, ambos em Osasco, respectivamente em 2015 e 2013.

O promotor do Ministério Público de São Paulo Marcelo Oliveira, que atuou no caso da chacina, disse que é “praticamente impossível” rastrear a origem das balas devido à fragilidade do controle de entrada e saída de munição nas polícias Militar e Federal e no Exército.

— O que eu vejo, atuando na Justiça Militar há três anos, é que infelizmente não existe controle. Ou o controle é muito falho — disse Oliveira. — Lembro que, quando começou a ser indagada a origem da munição (usada na chacina), que era um elemento de prova daquele conjunto, um capitão reformado do Exército respondeu que recordava de um sargento que tinha sido preso por desviar balas de São Paulo para o Rio. Mas é quase impossível ter certeza.

Os detalhes da Chacina de Osasco não são públicos porque o processo corre em sigilo na Justiça. O GLOBO descobriu, no entanto, que a mesmo munição foi usada em 2013, quando um grupo de amigos que jogava baralho em uma mesa de sinuca foi surpreendido por criminosos. O alvo era Ronaldo Barreto da Silva, suspeito de envolvimento com o tráfico. Dois jovens morreram, e dois fugiram com tiros nas pernas e nas nádegas. Entre os criminosos estava o PM Fabricio Emmanuel Eleutério, que também participou da chacina de 2015, ao lado do também policial militar Thiago Henklain e do guarda civil Sérgio Manhanhã. Todos foram condenados.

Até ontem, cinco pessoas foram ouvidas no inquérito sobre o assassinato de Marielle e Anderson. A Divisão de Homicídios da Polícia Civil suspeita que três pessoas participaram do assassinato. Um dos veículos usados na ação era clonado: tinha placa igual ao de um veículo de Nova Iguaçu.

CÂMERAS FILMARAM ÚLTIMOS MOMENTOS

Imagens de câmeras de segurança comprovam que o crime foi planejado. Marielle, Anderson e uma assessora da vereadora foram seguidos ao longo de quatro quilômetros, da Rua dos Inválidos, na Lapa, até a Rua João Paulo I, no Estácio. Os bandidos usaram dois carros, e esperaram os três saírem de um evento. Eles fizeram 13 disparos contra o veículo em que as vítimas estavam.

Investigadores foram ontem à Câmara Municipal e recolheram vários objetos do gabinete de Marielle, que serão analisados. O material, colocado em três sacolas, inclui arquivos digitais — investigadores vão checar se a vereadora recebeu ameaças pela internet ou trocou mensagens que possam revelar alguma desavença.

Também ontem, centenas de pessoas fizeram uma manifestação em frente ao Palácio Tiradentes, sede da Assembleia Legislativa, no Centro. Com cartazes e palavras de ordem, elas cobraram a elucidação do crime e fizeram críticas à intervenção federal na segurança.