O globo, n. 30911, 25/03/2018. País, p. 3

 

‘Acabou para mim a relação, entendeu?’

Sérgio Côrtes e Maiá Menezes

25/03/2018

 

 

Apontado pela Lava-Jato do Rio como o ‘menino de ouro’ de Sérgio Cabral, o ex-secretário estadual de Saúde Sérgio Côrtes relata um ‘fim da relação’ com o antigo tutor e detalha como foram os 300 dias no cárcere, na primeira entrevista após obter a liberdade, por decisão do ministro Gilmar Mendes, do STF. Como fez em juízo, admite ter recebido propina e se diz ‘envergonhado’. Após anos junto ao grupo que comandou o estado, acusou o governador Luiz Fernando Pezão em depoimento recente e, agora, demonstra-se disposto a colaborar com a Justiça. Côrtes, no entanto, ainda não conseguiu fechar sua delação

 

O senhor admite que participou de um esquema de corrupção?

Não nego a propina. Mas espero que, na hora de sentenciar, o doutor (Marcelo) Bretas analise a credibilidade do delator. Na primeira semana na cadeia, eu me lembro de me sentir injustiçado por ele (o empresário César Romero, delator que denunciou o esquema na Saúde). Depois, passei a sentir muito arrependimento pelo que fiz. De onde vinha a propina, então? Eu nunca repassei custos de tributos (nas compras da secretaria), como diz o delator. O dinheiro vinha da margem de lucro de empresas que operavam no exterior. A corrupção foi na margem de lucro, sem dano ao patrimônio.

 

Como foi a relação na cela com o ex-governador o Sérgio Cabral?

Eu não queria ter ido para a cela com o Cabral. Preferia ficar num espaço com outras 43 pessoas em vez de ter ido para a cela com ele. Por quê? Acabou para mim a relação, entendeu? Eu não queria mais aquilo. Eu saí do governo em dezembro de 2013. Avisei que faria isso em agosto daquele ano. A primeira operação da LavaJato foi em abril de 2014. Não queria mais viver aquilo. E, de alguma maneira, eu tenho muita vergonha do que eu fiz. Pelos meus filhos e pela minha esposa. A pior coisa que pode existir em um homem é ele ter vergonha do seu próprio nome.

 

O senhor conseguirá retomar as cirurgias, caso não ordenem seu retorno à prisão?

Não. Eu tenho uma compressão do nervo mediano, um dos nervos que fazem a gente ter o movimento de pinça do dedo. E o cirurgião precisa disso. Por isso meu braço estava enfaixado. Tive até que fazer uma cirurgia. Meu futuro hoje depende do doutor Bretas. Mas, na verdade, não estou pensando muito em futuro. Sei que eu criei marcas. Mas que valor tem isso? Zero. Porque tudo isso está associado à corrupção.

 

Qual foi sua primeira impressão ao chegar na cadeia?

Foi a pior de todas. Estava morrendo de medo. Cheguei e sofri um trote. Tinha uma cela com mais de 40 presos e começaram gritar: “Tem preso novo, vamos matar, vamos matar”. Eu me senti num filme americano. Eu me lembro de que estava com uma barba grande, que fui obrigado a cortar. Um preso responsável pela faxina me aconselhou: tem que reagir aqui dentro, se não sofrerá maldade o tempo todo. Perguntei: o que vai acontecer comigo se eu for naquela cela dos 40 presos “balangando” (jargão para balançar)? Ele me disse que, com o inspetor, não ia ter problema, não. Aí eu fui lá e perguntei: “Qual é o problema aqui?”. Foi interessante que todos começaram a rir de mim. E isso ficou folclórico na cadeia.

 

E os benefícios que a cela em que o senhor esteve recebeu?

Eu não comi ali, porque tenho uma vantagem: praticamente não como. A minha comida era quase sempre peito de frango. Aliás, o que estava errado ali com o Cabral? O que é proibido: comida in natura. Ali, onde estava o Cabral, é o seguinte: você pode entrar com queijo de minas, roquefort, mortadela ou presunto de parma. O que tinha lá era isso. Houve mesmo um protesto de presos com o guardanapo na cabeça (em referência à festa do guardanapo, em Paris, no auge do governo)? Isso é mentira.

 

E como foi depois disso?

Fui para o isolamento. Não se sabe por quê. Chamam de triagem. Não podia ter acesso a ventilador, a travesseiro, a nada. Troquei oito vezes de cela. Não é normal um preso mudar tanto. Até que fui colocado na cela do Cabral. Fui por ordem da direção, contra a minha vontade. Nessa cela estavam Cabral, Hudson (Braga), Carlos Miranda, Paulo Magalhães e Flávio, o segurança do exgovernador. Acha que Sérgio Cabral teve algo a ver com isso? Não sei.

 

E o caso do Garotinho? Ele foi agredido mesmo? (Côrtes atendeu o ex-governador em Benfica)

É surreal. Quando atendi o Garotinho, foi fora da cela. Conheço aquele vagabundo. Quando acabei, eu disse: “Você teve uma contusão no joelho e absolutamente mais nada”. E ele chegou até a assinar um documento. Aquela lesão que apareceu no pé dele foi feita depois. É impossível que alguém ali entrasse e saísse sem o flagrante das câmeras. Alguém ia ver.

 

Como era sua rotina na cadeia?

Escrevi um diário, com 300 páginas. Li 27 livros. E assumi a rotina como médico. A cela de 40 pessoas tinha dois banheiros. Entre cada beliche, havia um espaço do tamanho de um notebook. Era uma barulheira, com duas televisões, uma em cada ponto. Aliás, eram vários os barulhos da cadeia.

 

Quais são eles?

O pior de todos é o cadeado. A porta batendo e o cadeado trancando. Você fica ouvindo a noite toda as outras celas. Também tem o falatório. É como ficar ouvindo vozes 24 horas por dia. O sono é muito ruim. E via as pessoas com muita dificuldade de passar o tempo. O que pude perceber é que cadeia, definitivamente, não reabilita ninguém. Acho que a grande maioria sai pior do que entrou.

 

Como o senhor tem se comportado após a liberdade? Publicamos foto sua indo ao cabeleireiro no dia seguinte à sua saída da prisão...

Fiquei dez minutos ali, aguardando minha mulher. Vi que estavam me filmando. Eu jamais iria dizer: “O que você está fazendo, por que está me filmando?”. É um direito das pessoas. Acho que hoje nos enxergam como pessoas más, que erraram.

 

O senhor está falando dos agentes públicos e dos gestores...

Sim. O que eu coloco é que não sou melhor do que ninguém. Quando pedi para trabalhar na cadeia, porque estava em Bangu e tinha um preso com grave problema renal, fui atendê-lo em outra cela. E depois, no dia seguinte, o diretor me proibiu de atender: “Aqui você não é médico”. Depois pedi ao doutor Bretas autorização para isso. Passei a atender 60 presos por dia.

 

Tem redução de pena envolvida?

Nenhuma. Isso só será discutido no futuro. O exercício da profissão me ajudou muito. Não essa coisa piegas de fazer o bem. Ficava no terceiro andar, que era a triagem, onde entravam cem novos presos todos os dias. Ali tinham dois tipos de presos. Uns eram de facção: ADA, Comando Vermelho e Terceiro Comando — 90% era Comando Vermelho. Os outros presos se autointitulam “Povo de Israel”, porque se consideram aqueles que serão libertados um dia. Esse terceiro andar era a grande panela de pressão. Ali era um grande hospital de guerra. É um enxugar gelo permanente. E pude aprender outra coisa no meu tempo de prisão: o crime sai da cadeia. As ordens todas saem de lá.