O globo, n. 30922, 05/04/2018. País, p. 10

 

Reação - Um dia depois de Villas Bôas, decano do supremo critica 'insurgências'

05/04/2018

 

 

Celso de Mello fala no risco de ‘descaracterizar a legitimidade do poder civil instituído’

-BRASÍLIA.- As declarações publicadas no Twitter pelo comandante do Exército, Eduardo Villas Bôas, na noite de terça-feira, com críticas à “impunidade” na véspera do julgamento do habeas corpus do ex-presidente Lula, provocaram forte repercussão no meio político, jurídico e entre entidades da sociedade civil . O governo, por meio do Ministério da Defesa, até tentou esfriar a tensão, mas o esforço foi em vão.

No início do seu voto a favor do habeas corpus ao ex-presidente Lula, o ministro Celso de Mello rebateu a declaração. Sem citar diretamente Villas Bôas, Celso de Mello disse que um comentário realizado na terça-feira por “altíssima fonte” foi “claramente infringente do princípio da separação de poderes” e alertou contra “práticas estranhas e lesivas à ortodoxia constitucional”

— Nossa própria experiência histórica revela-nos que insurgências de natureza pretoriana, à semelhança da ideia metafórica do ovo da serpente, descaracterizam a legitimidade do poder civil instituído e fragilizam as instituições democráticas, ao mesmo tempo em que desrespeitam a autoridade suprema da Constituição e das leis da República

De acordo com o ministro, intervenções militares restringem a liberdade e limitam o espaço do dissenso e, por isso, são inaceitáveis.

— Intervenções castrenses, quando efetivadas e tornadas vitoriosas, tendem, na lógica do regime supressor das liberdades, a diminuir, quando não a eliminar, o espaço institucional reservado ao dissenso, limitando, desse modo, com danos irreversíveis ao sistema democrático, a possibilidade de livre expansão da atividade política e do exercício pleno da cidadania. Tudo isso é inaceitável.

Pela manhã, durante uma cerimônia no Palácio do Planalto, o presidente Michel Temer fez um discurso enfático de defesa da Constituição e da liberdade de expressão. Temer não mencionou o comandante:

— A democracia é o melhor dos regimes. Não é uma democracia simplesmente construída por pessoas, é a democracia construída pela ordem jurídica, pela soberania popular, que está esculpida, escrita na Constituição.

Na mesma linha do presidente, o presidente do Senado, Eunício Oliveira (PMDB-CE), também usou o Twitter para falar da responsabilidade institucional das autoridades em tempos de crise:

— Em momentos de tensão social e política, a missão dos líderes que têm responsabilidade institucional é transmitir serenidade à população.

Um dos poucos a se referir diretamente às declarações do comandante, o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM), afirmou que as mensagens do general provocaram muita especulação e deveriam ser evitadas.

— O que mais prejudica o país é desviar-se das determinações constitucionais, quando isso acontece, quando as pessoas acham que podem criar o direito a partir da sua mente e não a partir daquilo que está escrito, seja literalmente ou sistematicamente, você começa a desorganizar a sociedade — afirmou.

O procurador da República Ivan Cláudio Marx, do Ministério Público Federal em Brasília, assinou um ofício cobrando explicações do ministro da Defesa, Joaquim Silva e Luna, acerca dos tuítes do general. No documento, o procurador indagou sobre “eventual risco de função interventora” por parte das Forças Armadas. Como Silva e Luna tem foro privilegiado, o ofício precisou ser encaminhado à ProcuradoriaGeral da República antes de ser remetido ao titular da pasta.

O presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Claudio Lamachia, por sua vez, divulgou nota afirmando que o respeito às decisões do STF é condição fundamental para a democracia no país, “independentemente dos vencedores e dos vencidos”. “Para os males da democracia, mais democracia. Não podemos repetir os erros do passado!", disse a nota.

PANOS QUENTES

Em uma tentativa de esfriar o clima, o ministro da Defesa também divulgou nota pela manhã contemporizando as falas de Villas Bôas e afirmando que o general “mantém a coerência e o equilíbrio demonstrados em toda sua gestão” e que a manifestação no Twitter foi uma “mensagem de confiança e estímulo à concórdia”.

O ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, também tentou amenizar a situação, e disse que as declarações do comandante “representam a defesa da institucionalidade e da Constituição”.

A movimentação nos bastidores foi intensa antes do tuíte de Villas Bôas. Por volta das 16h de terça-feira, os telefones de alguns generais de quatro estrelas, do Alto Comando do Exército, começaram a tocar. Do outro lado da linha, Villas Bôas compartilhou com os colegas o pronunciamento que pretendia divulgar horas depois no Twitter. Um posicionamento que marcaria uma guinada na postura sempre moderada e discreta do chefe da caserna. Em duas postagens, Villas Bôas direcionou sua fala não a seus comandados, mas à “nação”, para certificar a todos os “cidadãos de bem”, o repúdio do Exército “à impunidade”. O tom político e pesado das palavras, às vésperas do julgamento do habeas corpus de Lula não foi surpresa entre os militares.

CRÍTICAS NA CASERNA

Reverberar a ampla maioria da sociedade, insatisfeita com os políticos e indignada com a impunidade reinante no país, foi a forma que o comandante encontrou de chamar para si a tropa e aplacar algumas críticas que vinham crescendo na caserna nas últimas semanas.

O gaúcho de Cruz Alta, de 66 anos, que ingressou no Exército ainda adolescente, aos 16 anos, pela Escola Preparatória de Cadetes do Exército, em Campinas, sempre foi conhecido pela postura moderada de pensar e agir. Um comportamento que lhe rendia elogios no mundo político e críticas dos militares, principalmente dos generais próximos ao Clube Militar, a chamada “ala do pijama”.

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Mudaram os tempos, mas ficaram as cicatrizes

Míriam Leitão

05/04/2018

 

 

Há muitas razões que explicam a celeuma provocada pela declaração do general Eduardo VillasBôas. A única que não faz sentido é a de que havia, naquelas palavras, uma ameaça de intervenção militar na vida política do país. Não houve isso. E as declarações que se sucederam, inclusive da Aeronáutica, tiraram qualquer dúvida que por acaso tenha ficado.

O Brasil, América Latina e o mundo vivem momento tão diverso daqueles complicados anos 1960, da guerra fria, que soaria estranho se o general tivesse feito a ameaça. Mas então por que seus tuítes viralizaram e espalharam intranquilidade? A história brasileira tem suas cicatrizes. Houve a ditadura de 1964, mas, do início da República até a redemocratização, os militares interferiram de uma forma ou de outra na vida política do país. Houve de tudo: presidentes militares após a proclamação, levantes, governos tutelados, vetos de militares e por fim o golpe de 64. Tudo isso cessou ao fim da ditadura militar, e as Forças Armadas limitaram-se aos papéis definidos pela Constituição. Mudaram os modos e os tempos, mas ficaram as cicatrizes. Isso é que provocou o susto de quintafeira à noite.

Mas o que disse o general? Que alguns pensam no país e outros nos interesses pessoais. Não especificou, apenas disse que era preciso perguntar “às instituições e ao povo”. Depois afirmou, sempre pelo Twitter, que o Exército repudia a impunidade e respeita a Constituição. E, por fim, concluiu que permanecia atento às suas missões institucionais.

Nenhuma novidade nesses pontos, já que a primeira dessas missões é respeitar a democracia e submeter-se às instituições civis. No meio da tarde de ontem, a Força Aérea fez uma nota para as suas tropas com um tom um pouco diferente e lembrando que posições pessoais não podem prevalecer. “Tentar impor nossa vontade é o que menos precisamos”, disse o brigadeiro Nivaldo Rossato.

Já é retrocesso suficiente ter que discutir notas de militares. Os jornalistas da minha geração aprenderam durante o governo autoritário a ler nas entrelinhas das “ordens do dia” para tentar.

Captar o ambiente dos quarteis, que repercutiria em todo o país. Isso ficou felizmente para trás. Os tuítes foram um erro de comunicação do general Villas-Bôas. Mais um erro, na verdade. Ele é reincidente.

Houve palavras fora do tom e da hora. Na véspera do julgamento do habeas corpus do ex-presidente Lula, e já se delineando um resultado favorável a ele, pareceu ser uma admoestação ao Supremo falar em “risco de impunidade".