Título: A rodovia das irregularidades
Autor: Sassine , Vinicius
Fonte: Correio Braziliense, 01/04/2012, Política, p. 2

O governo brasileiro teve 10 anos para promover uma concorrência pública, selecionar uma empreiteira e construir as estradas que tirariam do isolamento duas aldeias indígenas no Pará onde vivem mais de mil índios caiapós. O diretor-geral do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), o general do Exército Jorge Ernesto Pinto Fraxe, encontrou a solução para o problema, 28 dias depois de assumir o cargo em meio à faxina promovida pela presidente Dilma Rousseff no Ministério dos Transportes. Fraxe dispensou a realização de licitação para contratar a empreiteira responsável pelas estradas, um contrato de R$ 54,6 milhões. Não houve, até agora, uma dispensa de licitação pelo Dnit com valor tão alto, desde o início da gestão do general, em setembro do ano passado.

A dispensa foi feita dois dias depois de o Tribunal de Contas da União (TCU) publicar o resultado de uma auditoria nas obras da BR-364, no Acre. A empreiteira escolhida por Jorge Fraxe para conectar as aldeias à BR-163 é suspeita de superfaturamento e de prejuízo de R$ 29,6 milhões aos cofres públicos. Toda a cúpula do Ministério dos Transportes e dos órgãos vinculados à pasta foi trocada pela presidente Dilma em razão de contratos superfaturados.

A empreiteira contratada, a JM Terraplanagem e Construções, começou a construir as estradas na terra indígena Menkragnoti sem que o Dnit tenha obtido licença ambiental do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Os primeiros estudos ambientais para a construção da BR-163 — uma rodovia de 1,7 mil quilômetros, que conecta Mato Grosso ao Pará — incluíram a necessidade de vias de acesso às aldeias indígenas Baú, Pukani e Kubenkocre, todas elas no Pará, nas proximidades da divisa entre os dois estados. Esses estudos foram feitos em 2002 e, desde então, apenas a aldeia Baú foi beneficiada com uma via de acesso.

Em 2006, o Plano Básico Ambiental (PBA) para a BR-163, aprovado pelo Ibama, previu oficialmente a conexão das outras duas aldeias à rodovia, nas imediações dos municípios de Altamira e Novo Progresso (PA). Nenhuma frente de trabalho foi aberta na região até a dispensa de licitação pelo Dnit para contratar uma empresa suspeita de superfaturamento. No Ibama, as obras estão "em fase inicial de licenciamento". As estradas cortam áreas intactas de vegetação amazônica.

A passos lentos O Dnit assinou o contrato de R$ 54,6 milhões com a JM Terraplanagem e Construções em 14 de outubro de 2011. A empreiteira passou a ter 180 dias para construir as estradas que deveriam interligar as aldeias Pukani e Kubenkocre à BR-163. O prazo vence no próximo dia 13 e, até agora, apenas "um pedacinho insignificante" de estrada foi aberto na mata, segundo moradores da região. O próprio diretor-geral do Dnit admite que somente 14% do contrato foi cumprido. "Durante a estiagem, a empresa conseguiu executar e receber R$ 7,8 milhões. Chegaram as chuvas e os trabalhos foram paralisados", diz Jorge Fraxe. Segundo o general, o Dnit, agora, vai fazer licitação para "prosseguir no cumprimento das exigências do PBA do licenciamento da obra".

Os caiapós de Pukani e Kubenkocre continuam isolados. Foi essa a razão para um protesto em 12 de setembro do ano passado, quando os caiapós fecharam a BR-163 e interromperam o tráfego e as obras na rodovia, na altura do município de Novo Progresso. Segundo a prefeita da cidade, Madalena Hoffmann, os índios estavam armados com facões e revólveres e queimaram uma ponte da BR-163. O protesto durou menos de dois dias.

Em 16 de setembro, o diretor geral do Dnit e o presidente do Ibama, Curt Trennepohl, estiveram em Novo Progresso para negociar com os índios. Duas semanas depois, Jorge Fraxe dispensou a licitação para contratar a empreiteira. O protesto dos caiapós foi usado como argumento para a dispensa: havia urgência no caso, segundo o general.

A mesma construtora é citada na auditoria do TCU que apurou um superfaturamento de R$ 66,1 milhões e um sobrepreço de R$ 9,5 milhões nas obras da BR-364, no Acre, envolvendo três empreiteiras. Quase metade do prejuízo aos cofres públicos foi provocada pela JM Terraplanagem e Construções, segundo o TCU, em dois trechos de 48 quilômetros da rodovia. A empresa nega as acusações feitas pelo TCU.