Título: O esquecimento no refúgio
Autor: Augusto, Leonardo
Fonte: Correio Braziliense, 15/04/2012, Política, p. 12

Mogi das Cruzes (SP) — Mahmoud Abu Zamaq, de 66 anos, não queria, mas mora em Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Também não queria ter saído do Iraque, para onde foi se mudou tinha dois anos de idade. Palestino, Zamaq, hoje, queria era marcar a consulta que há seis meses tenta com um oftalmologista da rede pública de saúde. Outro desejo é voltar para Haifa, onde nasceu. Zamaq é um refugiado. Chegou a Mogi das Cruzes há cinco anos com a mulher e dois filhos em um grupo de 57 palestinos incluídos em programa de reassentamento para despatriados da Organização das Nações Unidas (ONU).

Todos viviam em Bagdá, a capital iraquiana, e foram obrigados a deixar o país — muitos sob a mira de armas — pelos próprios vizinhos, em 2003, quando começava a ruir a ditadura de Saddam Hussein, depois da invasão das tropas dos Estados Unidos. Eram vistos como estrangeiros que se aproveitavam do governo, que fornecia moradia aos palestinos. A saída foi migrar para a Jordânia, onde acabaram vivendo por quatro anos no campo para refugiados Ruweished, quatro horas a leste da capital Amam, antes de entrarem para o programa de reassentamento da ONU.

A chegada ao Brasil soou como um recomeço. Agora, sem a possibilidade de qualquer tipo de perseguição. Porém, novo país, novos problemas. Os palestinos de Mogi encontram dificuldades para arrumar emprego, afirmam não conseguir acesso ao sistema público de saúde, documentos pessoais e, principalmente, reclamam do fim do pagamento do auxílio financeiro fornecido pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur).

Ahmad Mahmoud Abu Zamaq, de 33 anos, filho de Mahmoud Zamaq, teve a água cortada da loja em que produz artigos de couro com o pai. O débito ultrapassa R$ 500. Ahmad, que nasceu em Bagdá mas se considera palestino — a informação inclusive consta em documento emitido pelas autoridades brasileiras — paga R$ 600 de aluguel na loja. O ex-morador do Iraque vive com a mulher, o pai, um irmão e a filha de dois anos, Lara, que nasceu no Brasil, em apartamento construído sobre o estabelecimento. A família pagava R$ 800 de aluguel pelo imóvel mas, por boa vontade do dono do apartamento, o valor foi reduzido para R$ 500. Conforme Ahmad, o comércio não rende R$ 1 mil por mês.

Por estar com idade mais avançada, o auxílio financeiro fornecido pela ONU continua sendo repassado ao pai de Ahmad. Os outros integrantes da família, no entanto, tiveram os valores cortados há três anos. "Só quero que paguem o aluguel da nossa casa", diz o palestino. Os valores pagos pela ONU, sempre por intermédio de uma organização não governamental, variam conforme a idade e o estado civil.

Assim como o pai, o primeiro filho de Zamaq, Thaer Mahmoud Abu Zamaq, de 36 anos, também reclama do sistema público de saúde. "Os médicos não fazem exame nenhum na consulta e logo mandam para a fisioterapia", diz. Mais irritadiço que o pai e o irmão, e sempre com um pequeno sorriso que parece dizer "como tudo isso é possível?", Thaer reclama também da comida no Brasil. "Que comida? Fazemos sempre é tabule, charuto. Não existe outra comida", afirma, citando as tradicionais comidas dos povos árabes. Em outra área, no entanto, o palestino parece estar mais à vontade no Brasil. Questionado se tinha namorada, Thaer conta que já conseguiu duas. "Mas meu pai não pode saber. Para ficar com a gente, as moças têm de se converter ao islamismo".

Sem lugar O pai de Ahamd e Thaer é um dos mais antigos entre os palestinos de Mogi das Cruzes. Zamaq deixou Haifa em 1948, aos 2 anos, com a família, imediatamente após da criação do Estado de Israel, depois da recusa dos pais de continuarem vivendo na região, que teve a administração transferida para a comunidade judaica. As dificuldades no Brasil fazem Zamaq ter uma resposta só ao ser perguntado sobre o que pretende fazer nos próximos anos: "Voltar para Haifa". No ano passado, o palestino perdeu a mulher, de câncer, aos 55 anos. Os refugiados mais novos de Mogi das Cruzes tiveram aulas de português e falam bem o idioma. Os mais velhos, porém, não aprenderam a língua e se comunicam pelos mais jovens. Em meio aos palestinos, a cidade passou a abrigar um mestre em gramática árabe, Safa Shain, de 36 anos, também nascido em Bagdá e expulso de casa em 2003.

Apesar da qualificação, Safa afirma que não consegue trabalhar como professor por falta de documentos que comprovem no país a profissão que tinha no Iraque. "No Brasil já fui cozinheiro em um restaurante árabe e hoje trabalho com artesanato", conta. O palestino também reclama da suspensão da ajuda financeira que era repassada pela ONU. "Antes de viajarmos para Mogi nos prometeram uma coisa. Mas, aqui, fizeram outra. "

Abrigo aos expatriados O campo de refugiados de Ruweished, na Jordânia, foi criado em 2003 e fechado em 2007 com a partida dos últimos despatriados acolhidos na reserva para o Brasil e outros países que participaram do programa de reassentamento das Nações Unidas. A maior parte dos abrigados era de palestinos expulsos do Iraque depois da invasão das tropas dos Estados Unidos, em 2003. No entanto, o campo recebeu ainda iranianos e sudaneses. Ruweished chegou a manter mil refugiados, conforme dados da ONU.