O Estado de São Paulo, n.45506 , 21/05/2018. Editorial, p.A2

Imprensa, Igreja e Estado

 

 

O Brasil é um país cristão, de expressiva maioria católica. A informação de religião, portanto, merece atenção especial. É um segmento importante. A quantidade da informação religiosa, em geral, é bastante razoável. Alguns riscos, no entanto, ameaçam a qualidade da cobertura jornalística. Sobressai, entre eles, a falta de especialização, razoável desconhecimento técnico e, reconheçamos, certa dose de preconceito. Acrescem a tudo isso o amadorismo, o despreparo e a falta de transparência da comunicação eclesiástica. Falta profissionalização da comunicação institucional da Igreja.

A Igreja Católica, instituição de grande presença e influência na agenda pública brasileira, é sempre notícia. Trabalhar a informação religiosa com rigor e isenção é um desafio. Muitas vezes ganhamos. Outras, perdemos.

Vamos a um exemplo histórico. Em sua primeira viagem à África, o papa Bento XVI reafirmou a oposição da Igreja ao uso dos preservativos. Os jornais afirmaram que Bento XVI teria dito que “a camisinha agrava a aids”. Errado. O que o papa disse, e repetiu ao longo do seu pontificado, é que a verdadeira luta contra a aids passa pela “humanização da sexualidade”. A mera distribuição de preservativos é, segundo a Igreja, uma estratégia equivocada.

A Igreja prega abertamente que a fidelidade dentro do casamento, a castidade e a abstinência são a melhor maneira de combater a aids. Tal postura não decorre de uma histeria conservadora. Resulta, na verdade, de conceitos antropológicos profundos, embora, reconheço, politicamente incorretos. Podemos concordar ou discordar, podemos achar que se trata de uma exigência excessiva, mas não podemos desqualificar por baixo.

A mídia dá foco absoluto ao que a Igreja faz ou fará. Gente de todas as denominações cristãs (e até mesmo sem nenhuma profissão religiosa) dá opiniões sobre os caminhos que a Igreja Católica deve tomar. Se a Igreja estivesse de fato fora do tempo e do páreo, anacrônica e ultrapassada, poucos se dariam a esse trabalho.

É notável o vigor da Igreja e a sintonia do papa Francisco com a juventude. Pede aos jovens, frequentemente, que sejam “revolucionários”, isto é, que “se rebelem contra a cultura do provisório”, assumindo responsabilidades sem se deixarem levar “pelas modas e conveniências do momento”.

Destaca, e muito, o tom positivo que permeia os discursos do papa. Impressiona, também, a transparência de Francisco em suas entrevistas aos jornalistas. O que se capta não é uma Igreja acuada, envelhecida, na defensiva. Ao contrário.

O papa rasga um horizonte valente e generoso. Deixa claro que os católicos não são antinada. O cristianismo não é uma alternativa negativa, encolhimento medroso ou mera resignação. É uma proposta afirmativa, alegre, revolucionária.

Os discursos do papa não desembocam num compêndio moralizador, mas num desafio empolgante proposto por uma pessoa: Jesus Cristo. Os jovens entendem o recado e interagem bem com o pontífice.

Francisco insiste muito na essência da mensagem cristã: a misericórdia de Deus. A “plataforma moral” da Igreja não pode ser erguida sobre os alicerces do legalismo, mas em cima dos sólidos pilares de um projeto de salvação. Sem isso, e sem o exercício da liberdade humana, o edifício da Igreja “corre o risco de cair como um castelo de cartas, de perder a frescura e o perfume do Evangelho. A proposta evangélica deve ser mais simples, profunda, irradiante. É desta proposta que vêm depois as consequências morais”.

Os papas, o atual e seus antecessores, na defesa do núcleo fundamental da fé católica podem trombar com o politicamente correto. É natural. Sem essa defesa, muitas vezes na contramão dos modismos de ocasião, a Igreja perderia sua identidade. Se os papas procurassem o “sucesso” – que parece ser a medida suprema da realização para os que tudo medem pelos ibopes –, bastaria que, esquecendo-se da verdade que custodiam, se tivessem bandeado pouco a pouco, como fazem certos “teólogos”, para os “novos valores” (em linguagem cristã, contravalores) que cada vez mais tentam dominar o mundo.

É patente que, na hora atual, vivemos uma encruzilhada histórica em que são incontáveis os que parecem andar pela vida sem norte nem rumo, entre as areias movediças do niilismo. Pretende-se que, perante este deslizamento do mundo para baixo, com a glorificação de todo nonsense moral, a Igreja exerça a sua missão acompanhando a descida, cedendo a tudo e se limitando a um vago programa socioecológico, a belos discursos de paz e amor e a um ecumenismo em que todos os equívocos se podem abraçar e congraçar, porque ninguém acredita mais em coisa alguma, a não ser em viver bem? Mas a coerência doutrinal da Igreja, por vezes conflitante com certas posturas comportamentais, tem sido um fator de defesa e elevação ética das sociedades.

A correta informação sobre a Igreja passa pelo reconhecimento de seu papel na sociedade e pelo seu direito de transitar no espaço público. Caso contrário, cairíamos no laicismo antidemocrático. O Estado é laico, mas não é ateu. O laicismo militante pretende ser a “única verdade” racional, a única digna de ser levada em consideração na cultura, na política, na legislação, no ensino, etc. Por outras palavras, o laicismo é um dogmatismo secular, algo tão pernicioso quanto o clericalismo autoritário do passado.

Tentar expulsar a Igreja do debate em defesa da vida, por exemplo, é arbítrio laicista. A independência é um bem para a Igreja e para o Estado. Mas não significa ruptura e, muito menos, virar as costas para o Brasil real, uma nação de raízes culturais cristãs. Informar com isenção é um desafio. E é aí que mora o fascínio da nossa profissão.

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