O globo, n. 31002, 24/06/2018. País, p. 4

 

 
Cadeias violentas, cidades mais perigosas
Igor Mello
Juliana Castro
24/06/2018
 
 

Fortalecidas, facções criminosas se espalham e legitimam suas ‘cartilhas’ dentro e fora das penitenciárias

As quatro mortes diárias nas prisões brasileiras, resultado de ambientes insalubres administrados pelo Estado ou da violência entre detentos, fazem parte de um quadro maior. Cadeias também são incubadoras de facções criminosas. Articulados atrás das grades, esses grupos — presentes hoje inclusive em cidades do interior nas regiões Norte e Nordeste — têm reflexo direto na crise de segurança pública que mata mais de 60 mil pessoas por ano. Cadeias piores geram mais insegurança para a sociedade, apontam especialistas e autoridades ouvidas pelo GLOBO.

Ao ocupar o papel que deveria ser do poder público, quadrilhas ganharam legitimidade: suas “cartilhas” estabelecem regras de conduta nas quais a lei deixa de valer, e seus recursos financeiros garantem assistência médica e jurídica aos seus integrantes, além de auxílio para famílias.

Um caso emblemático é o Rio Grande do Norte. Lá fica a Penitenciária Estadual de Alcaçuz, onde 26 presos foram assassinados por colegas de prisão em janeiro de 2017. O massacre tem relação com a disputa por rotas de tráfico em todo o país, intensificada com o fim da aliança entre o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV): no presídio potiguar, presos do PCC mataram os membros do Sindicato do Crime, quadrilha aliada ao CV. Segundo autoridades locais, a ação foi uma retaliação às 56 mortes no Complexo Penitenciário Anísio Jobim, em Manaus, onde os integrantes do PCC foram atacados pela Família do Norte, outro grupo criminoso aliado da facção carioca.

O crescimento das mortes violentas nas ruas acompanharam a alta letalidade intramuros. Entre 2014 e 2017, o número de presos mortos no Rio Grande do Norte quadruplicou — saltando de dez para 43 óbitos. Já os dados do Atlas da Violência do 2018 mostram que a taxa de homicídios no estado cresceu 256,9% entre 2006 e 2016.

O aumento da violência no estado coincide com a expansão dos grupos criminosos. E esse crescimento foi catapultado por relações cultivadas justamente no sistema penitenciário. O nascimento e a expansão das duas maiores facções potiguares se deram a partir das prisões. Sob anonimato, um promotor do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado explica que o PCC entrou no estado em 2007, depois que presos potiguares foram levados para cumprir pena em outros estados e tiveram contato com a “cartilha” da facção paulista. O grupo criminoso, então, começou a tomar corpo com a mesma doutrinação. A facção que hoje é rival do PCC no estado nasceu após desentendimentos, dentro e fora das grades.

— Os fundadores estavam presos quando houve essa dissidência e criaram sua própria organização, o Sindicato do Crime, em 2012, 2013. E essa facção começou a se estruturar com base no modelo do PCC — explica o promotor.

A superlotação favorece a atuação das facções. Muitas vezes, como o Estado não fornece assistência, o preso, por uma questão de sobrevivência, aceita receber ajuda da quadrilha. Depois, o favor é cobrado.

— A superlotação só dá lucro para agente penitenciário corrupto (por meio de cobrança por favores) e facção — afirma o ex-conselheiro do CNJ Rogério Nascimento. — Se matar bandido funcionasse, o Brasil seria a Suíça.

Essa é a gênese do surgimento das facções no Brasil. O CV, primeiro grupo do gênero, foi criado por presos que reivindicavam melhores condições no Presídio da Ilha Grande, a partir do fim dos anos 1970. Já o PCC é fruto do massacre do Carandiru, quando 111 presos da unidade foram mortos pela Polícia Militar de São Paulo em 1992.

— É esse grupo que passa a representar e defender os interesses dessas pessoas. A resposta do Estado tem sido cada vez mais repressão e controle, muitas vezes com violência e tortura. E isso faz esses grupos serem ainda mais necessários (aos presos) — explica Valdirene Daufemdack, ex-diretora do Depen e inspetora do Mecanismo Nacional de Combate e Prevenção à Tortura.

RETRATOS DA DOR

ROGER WIRLEY CORREA DE OLIVEIRA, 18 ANOS

MORTE POR PNEUMONIA OCORREU TRÊS MESES APÓS PRISÃO PROVISÓRIA

As lágrimas escorrem pelo rosto de Marciléa Oliveira quando ela caminha em meio às covas de um cemitério municipal de São Gonçalo. Foi ali que, há três anos, enterrou o filho caçula, de apenas 18 anos. Roger Wirley Correa de Oliveira estava preso há três meses. Morreu de pneumonia, aguardando julgamento, acusado de envolvimento com o tráfico de drogas. O jovem estava no presídio Ary Franco, em Água Santa, na Zona Norte do Rio. Como Roger, outros 39 detentos da unidade vieram a óbito entre 2014 e 2017.

CUSTÓDIO COIMBRA

— Eu queria cavar e tirar meu filho dali. Foi muito duro para mim — disse Marciléa sobre o dia do enterro.

Roger morreu no dia 18 de junho de 2015. Marciléa diz que só recebeu a notícia cinco dias depois, quando, após insistir para saber do filho, recebeu uma ligação do hospital penitenciário informando o que havia ocorrido.

— Eles me falaram que ele tinha ido a óbito há um tempinho. E ainda me deram a notícia por telefone. Entrei em desespero porque achei que tinham enterrado meu filho como indigente — conta ela, dizendo que, no IML, uma funcionária afirmou que dois detentos que vieram do mesmo lugar que Roger tinham sido enterrados como indigentes.

Até hoje, a causa da morte é motivo de desconfiança para Marciléa, que chegou a pedir na Justiça a exumação do corpo para saber se o que consta no atestado de óbito é verdadeiro:

— Não me conformo com a maneira como o Estado agiu. Fiquei sem saber que meu filho estava morto.

Marciléa não conseguiu ver o filho vivo após a prisão, porque a carteira de visitante exigida para a entrada nos presídios só ficou pronta no dia do enterro de Roger. A primeira visita ao jovem seria na semana seguinte. Ela conta que as frequentes transferências de unidade dificultaram a aquisição do documento. Marciléa diz que Roger tinha epilepsia e, quando sofria um ataque, era levado para um hospital e, em seguida, acabava mudando de prisão.

— Eu sentia no coração que ele ia (morrer). Queria vê-lo antes. Orava a Deus para não deixar meu filho morrer sem eu vê-lo primeiro. No dia, senti um aperto muito grande no coração — conta ela.

CLAUDIO OLIVEIRA DE SOUZA JESUS, 21 ANOS

PRESO PROVISÓRIO NA CADEIA PÚBLICA TIAGO TELES DE CASTRO DOMINGUES

Acusado de participar de um assalto a um veículo dos Correios, Claudio revelou à mãe, antes de se entregar na 28ª DP (Campinho), preocupação com sua saúde na prisão: ele havia perdido um rim durante a adolescência. Desde então, precisava de uma dieta controlada para não ter complicações.

A dúvida acerca das condições no cárcere logo se tornou uma amarga certeza. Na Cadeia Pública Tiago Teles de Castro Domingues, em São Gonçalo, onde ficou preso provisoriamente, pegou sarna, emagreceu e viu as pernas incharem a ponto de não conseguir andar. Entre idas e vindas para atendimento médico, foi definhando, segundo uma parente. Quando seu estado se agravou, foi internado no Hospital Dr. Hamilton Agostinho Vieira de Castro, no Complexo do Gericinó, de onde só sairia morto, dez meses depois de ser detido. Segundo os registros da Secretaria de Administração Penitenciária (Seap), a morte ocorreu no dia 30 de setembro de 2017. Mas ninguém comunicou a família, que só foi informada no domingo seguinte, ao chegar para visitá-lo. Ao se lembrar da humilhação, a voz de X., parente do preso, fica embargada.

— A médica me falou: “Olha, o Claudio faleceu”. Eu fiquei tonta e fui caindo. E ela disse: “Se cair, vai ficar no chão, porque ninguém aqui vai te atender” — relembra, indignada. — A médica perguntou para mim: “Você não viu o estado em que ele estava? Imaginou o quê? Não sabia que ele ia morrer?”.

Ela reclama das restrições feitas a familiares, que não podem levar comida para os detentos internados, por exemplo. Segundo X., Claudio reclamava constantemente de estar passando fome durante o tratamento.

— A cela onde ficava essa enfermaria só tinha três presos, todos acamados. Os funcionários não davam a comida para eles, deixavam em um local próximo, mas ele não conseguia se levantar para buscar — reclama.

A rotina de mortes que vivenciou durante as visitas tira sua esperança de que algo vá mudar.

— É muita morte. Não houve uma visita sem que alguém tivesse morrido, uma mãe estivesse chorando — diz essa parente.

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Para resolver crise, presidenciáveis prometem construir mais prisões

24/06/2018

 

 

Líder nas pesquisas, Bolsonaro diz que encontrar solução não está entre prioridades

Diante dos números alarmantes sobre as mortes no sistema prisional brasileiro obtidos pelo GLOBO e de planos nacionais que visaram a dirimir, em vão, os problemas da área, os principais pré-candidatos à Presidência elencaram suas propostas para a área. Os projetos vão da construção de mais presídios a treinamento de agentes penitenciários, passando por formas de ressocializar o ex-detento na sociedade.

O deputado federal Jair Bolsonaro (PSL), que lidera as pesquisas nos cenários sem o ex-presidente Lula, disse que o governo federal não tem recursos e não é fácil resolver a superlotação:

— Eu prefiro investir em outras áreas. Não quero que ninguém morra, mas isso (encontrar uma solução para o sistema prisional) não está entre as minhas prioridades.

Já a ex-senadora Marina Silva (Rede) propõe investir no treinamento de agentes penitenciários e demais profissionais que atuam na assistência social, psicológica, de saúde e educação, assim como em equipamentos de segurança e tecnologia. Além disso, promete reduzir o contingente de presos que aguardam julgamento por meio de mutirões carcerários e audiências de custódia. Também pretende aumentar o número de vagas no sistema, garantindo alternativas de estudo, trabalho e serviços básicos.

Uma das propostas da ex-senadora é auxiliar os estados a reestruturarem seus presídios e políticas de gestão prisional. Por meio de sua assessoria, disse ainda que vai instituir uma política de apoio a egressos do sistema penitenciário ou de encaminhamento dessas pessoas para sistemas vigentes no plano local ou estadual.

O ex-governador de São Paulo Geraldo Alckmin (PSDB) diz ser preciso ampliar o número de prisões federais, para abrigar especialmente as lideranças do crime organizado. Atualmente, o país tem quatro presídios federais. Um está em construção no Distrito Federal e um sexto, no Rio Grande do Sul, foi anunciado.

O tucano propõe investimentos na criação de Centros de Detenção Provisória para “zerar” presos em cadeias e a ampliação das parcerias público-privadas para a construção de novas unidades. Alckmin diz ainda, por meio de sua assessoria que, no que se refere à ressocialização, os detentos podem ocupar postos de trabalho, tanto nas unidades prisionais quanto em atividades externas, a serviço de empresas privadas e órgãos públicos.

Uma das propostas do senador Álvaro Dias (Podemos) é a construção de mais presídios para garantir segurança, separar estrategicamente presos e melhorar o serviço prisional. Outra promessa é oferecer trabalho e estudo, por meio da construção de oficinas nas penitenciárias e implementação de programas de leitura, educação e treinamento para o trabalho externo. Além disso, o parlamentar afirma que oferecerá incentivo fiscal para a contratação de presos e egressos pela iniciativa privada. Diz ainda que vai dar maior autonomia para os estados legislarem sobre matéria penal. Ciro Gomes (PDT) não respondeu até o fechamento desta edição.