Correio braziliense, n. 20161, 02/08/2018. Mundo, p. 12

 

No rastro de Cristina

02/08/2018

 

 

AMÉRICA LATINA » Prisão de 12 empresários e ex-funcionários do governo envolve a ex-presidente na "Lava-Jato argentina" " a investigação sobre um esquema milionário de pagamento de propinas em troca de obras públicas

Às voltas com uma nova investigação, que a imprensa local batizou de “Lava-Jato da Argentina”, a ex-presidente Cristina Kirchner (2007-2015) deverá depor em 13 de agosto sobre um grande escândalo de pagamento de propinas, que ontem levou à prisão de 12 empresários e ex-funcionários kirchneristas. Grande parte do grupo é de líderes vinculados aos governos de Cristina e do falecido marido, Néstor Kirchner, e ao ex-ministro do Planejamento Julio de Vido. Os valores movimentados no esquema ultrapassariam US$ 160 milhões. Segundo fontes judiciais, a atual senadora deverá comparecer perante o juiz federal Claudio Bonadio, o mesmo que a indiciou em outras investigações e chegou a pedir sua detenção — impossibilitada pela imunidade parlamentar.

“A hipótese que está sendo investigada é de associação ilícita”, declarou o promotor do caso, Carlos Stornelli, sobre a situação da ex-governante. Como o caso está sob sigilo, Stornelli não esclareceu se ela foi convocada para depor como testemunha ou investigada.

As prisões, ordenadas por Bonadio, começaram a ser executadas de madrugada. A que causou maior comoção, por suspeitas de corrupção, foi a de Roberto Baratta, ex-secretário de coordenação de De Vido — o ex-ministro do Planejamento está detido no âmbito de outra investigação.

Também foram presos Rafael Llorens, ex-subsecretário Legal de Planificação Federal, e os empresários Gerardo Ferreyra, da empresa Electroingenieria, e Javier Sánchez Caballero, da Iecsa — ambas as companhias venceram licitações durante a gestão de De Vido. Devido às grandes proporções do escândalo e ao número elevado de prisões, o caso está sendo comparado pela mídia local à ofensiva judicial em curso no Brasil contra a corrupção, a Lava-Jato.

Motorista

As apurações sobre uma suposta rede de pagamento de propinas em troca de obras públicas começaram com uma série de reportagens do jornal La Nación , baseadas em milhares de registros que um motorista de Baratta, Oscar Centeno, fez durante os 10 anos em que trabalhou no Ministério do Planejamento. Nomes, valores, endereços, datas e lugares relacionados ao escândalo foram compilados pela equipe do jornal em oito cadernos cujas cópias foram entregues ao promotor Stornelli.

Essas anotações, que estão sendo chamadas pela imprensa de “caderninhos do suborno”, incluem nomes como os do ex-chefe de Gabinete Juan Manuel Abal Medina, do ex-secretário geral da Presidência Oscar Parrilli e de outros ex-funcionários. Eles também foram convocados a prestar depoimento.

As prisões foram ordenadas após o depoimento da ex-mulher do motorista Centeno, preso na terça-feira. Ela relatou entregas de sacolas com dinheiro em diferentes endereços, sobretudo em Buenos Aires, e atestou que sempre ficava dentro do carro enquanto o ex-marido distribuía as propinas.

Bonadio citou a ex-presidente porque sua casa na capital argentina é apontada como o destino de uma das entregas, conforme as anotações sobre os detalhes da movimentação do dinheiro da propina. Outro endereço citado é a Quinta de Olivos, residência oficial da presidência, frequentada pela família quando o ex-presidente Néstor Kirchner estava vivo.

As prisões de ontem foram precedidas por 34 devassas ordenadas por Bonadio, em um escândalo que apresenta potencial para desgastar ainda mais a imagem de Cristina Kirchner. Alvo de outras investigações (leia o quadro), ela tem o firme propósito de disputar novamente a Casa Rosada (sede da Presidência) em 2019.

O motorista Oscar Centeno terá a possibilidade de se tornar um colaborador da Justiça em troca de benefícios penais. Seu primeiro interrogatório, marcado para a manhã de ontem, não ocorreu porque ele desconstituiu o advogado Norberto Frontini, ligado ao kirchnerismo.

Os “processos K”

Além do caso das propinas, a ex-presidente tem outros problemas com a Justiça

Santa Cruz

O juiz Julian Ercolini determinou, em março, que Cristina Kirchner seja julgada pela acusação de favorecer a empresa Austral, do amigo empresário Lazaro Baez, em contratos públicos no valor de US$ 2,4 billhões com a Província de Santa Cruz, reduto eleitoral da senadora. Também são réus o magnata e o ex-ministro de Planejamento Federal Julio de Vido, político do círculo mais próximo de Cristina.

Lavagem

A ex-presidente e os filhos Máximo e Florencia são acusados de lavagem de dinheiro associada ao aluguel de hotéis pertencentes à família. Também está envolvido no caso o multimilionário Cristóbal López. Cristina e os filhos tiveram US$ 31 milhões embargados.

Dólar futuro

Cristina irá a julgamento acusada de ter prejudicado as finanças públicas com uma manobra no mercado cambial, nas últimas semanas de mandato, em 2015. Empresários associados à presidente obtiveram informação privilegiada e negociaram a moeda americana no mercado futuro dias antes de o Banco Central desvalorizar o peso. O Estado perdeu cerca de

US$ 3,5 bilhões.

Caso Amia

A hoje senadora e o ex-chanceler Héctor Timmerman respondem à acusação de terem feito um acordo com o Irã para livrar agentes responsáveis pelos atentados de 1994 contra a associação judaica Amia e a Embaixada de Israel, com saldo de 85 mortos.

Promotor Nisman

Em fevereiro último, a Justiça reabriu o caso do promotor Alberto Nisman, que investigava o caso Amia e apareceu morto, em seu apartamento, em janeiro de 2015 — dias antes de apresentar denúncia contra Cristina Kirchner. O inquérito tinha sido encerrado como suicídio, mas um tribunal federal de Buenos Aires instruiu investigação sobre homicídio, embora sem citar a ex-presidente.