Correio braziliense, n. 20162, 03/08/2018. Mundo, p. 12

 

Pena de morte inadimissível

Rodrigo Craveiro

03/08/2018

 

 

VATICANO » Em gesto histórico, papa Francisco altera o Catecismo da Igreja Católica, afirma que as execuções atentam contra a "inviolabilidade da pessoa" e anuncia esforços para abolir método em todos os países. Governador de Nova York promete modificar a lei

Entre 1231 e 1826, milhares de “hereges” foram executados pelo chamado Tribunal da Santa Inquisição — muitos deles pereceram nas fogueiras, com pés e mãos amarrados. Mais de um século depois de oficialmente determinar o fim da Congregação da Inquisição, a Santa Sé tomou uma decisão histórica: o papa Francisco aprovou a nova minuta do artigo 2.267 do Catecismo da Igreja Católica, segundo a qual declara “inadmissível” a pena de morte. A mudança no texto deixa expressa a determinação do Vaticano em trabalhar pela abolição das execuções em todo o mundo. “A Igreja ensina, à luz do Evangelho, que ‘a pena de morte é inadmissível, porque atenta contra a inviolabilidade e a dignidade da pessoa’, e empenha-se com determinação a favor da sua abolição em todo o mundo”, afirma a nova redação (leia nesta página), aprovada pelo pontífice argentino em maio e publicada ontem pela Congregação para a Doutrina da Fé, a instituição que substituiu a Inquisição. Vaticanistas sublinharam a importância do direcionamento de Francisco sobre o tema e lembram que o catecismo reúne o conjunto de ensinamentos da religião católica.

Horas depois do anúncio do pontífice, o governador do estado norte-americano de Nova York, Andrew Cuomo, publicou mensagem surpreendente no Twitter. “A pena de morte é moralmente indefensável e não tem lugar no século 21. Hoje, em solidariedade com o papa e em honra de meu pai, eu avançarei a legislação para remover a pena de morte da lei do Estado de uma vez por todas”, declarou. Em 11 de outubro passado, durante pronunciamento ante o Conselho Pontifício para a Promoção da Nova Evangelização e no marco do 25º aniversário de publicação do Catecismo da Igreja Católica, Francisco tinha se pronunciado de forma contundente contra a pena capital. “Deve ser fortemente confirmado que condenar uma pessoa à pena de morte é uma medida desumana, que humilha, de qualquer forma, a dignidade humana”, afirmou.

Autor de The Vatican diaries (“Os diários do Vaticano”), John Thavis admite a hipocrisia da Igreja, em face do seu histórico de execuções.  “Mas, graças a Deus, a Igreja de hoje não é mais a Igreja da Inquisição”, disse ao Correio. Para o jornalista e vaticanista norte-americano, a atualização do catecismo é um passo significativo no ensinamento da justiça social da Igreja. Ele lembrou que Francisco tem expressado o seu ponto de vista contra a pena capital por vários anos e, agora, o consagrou no catecismo oficial da instituição. “Isso significa que os fiéis não mais podem descartar o tema como se fosse uma ‘opinião do papa’. Agora, se trata de um ensinamento da Igreja”, destacou.

Thavis considera  importante o fato de os pontífices João Paulo II e Bento XVI terem lançado as bases para a mudança, ao declararem que a pena capital dificilmente pode ser justificada. “Francisco pode, honestamente, dizer que segue os passos dos antecessores. A decisão mostra como os ensinamentos da Igreja, ainda que sobre a vida e a morte, podem evoluir e mudar radicalmente ao longo do tempo. Para a Igreja, é uma demonstração de que a consciência moral pode evoluir e, algumas vezes, desafiar posições tradicionais.” O escritor espera que a resolução do Vaticano motive ativistas políticos que têm trabalhado contra a pena capital e inspire o surgimento de movimentos similares. “É assim que a ação política se constrói.”

Compasso da história

Vaticanista e diretor do Centro para Compreensão Cristã-Islâmica da Universidade de Georgetown, John Voll explicou à reportagem que instituições religiosas, assim como as políticas e as sociais, tendem a mudar, em sintonia com transformações históricas mais amplas. “A oposição da Igreja Católica reflete a evolução de atitudes em relação à pena capital. Não seria desejável para o Vaticano continuar a matar hereges. Por isso, a posição emergente sobre a pena de morte não é tanto hipocrisia, mas um reconhecimento de necessidade de mudança, por parte da Igreja contemporânea”, afirmou ao Correio.

Apesar de classificar de “inapropriada” a atualização do catecismo em relação à pena capital, Maya Foa — diretora da organização internacional de direitos humanos Reprieve (em Londres) — acredita que ela se trata de um “poderoso episódio nos esforços de abolir as execuções”. “O anúncio vem em um momento particularmente importante nos EUA. Há um debate feroz em torno da injeção letal, com um número de estados se movendo para métodos alternativos e cada vez mais empresas farmacêuticas expressam suas objeções ao uso indevido de suas drogas”, afirmou, por e-mail.

A ativista sustentou que o anúncio de ontem é um lembrete de que o símbolo da Igreja, a cruz, era o método popular de execução na época de Jesus e que o próprio Cristo foi a vítima mais famosa da pena capital. “O papa é uma das vozes morais mais persuasivas do mundo, e sua declaração terá implicações para católicos e não-católicos. Também terá o potencial de influenciar políticos ao redor do planeta. O mais importante, talvez, sejam as profundas consequências na opinião pública sobre a pena de morte. Agora, a oposição à pena capital é parte oficial da doutrina católica, e quase certamente será incorporada às lições sobre a crucificação ou às histórias sobre os mártires da Igreja”, completou Foa. » RODRIGO CRAVEIRO

Como ficou a redação do artigo 2.267 do Catecismo da Igreja Católica

“Durante muito tempo, considerou-se o recurso à pena de morte por parte da autoridade legítima, depois de um processo regular, como uma resposta adequada à gravidade de alguns delitos e um meio aceitável, ainda que extremo, para a tutela do bem comum. Hoje, vai-se tornando cada vez mais viva a consciência de que a dignidade da pessoa não se perde, mesmo depois de ter cometido crimes gravíssimos. Além disso, difundiu-se uma nova compreensão do sentido das sanções penais por parte do Estado. Por fim, foram desenvolvidos sistemas de detenção mais eficazes, que garantem a indispensável defesa dos cidadãos sem, ao mesmo tempo, tirar definitivamente ao réu a possibilidade de se redimir. Por isso a Igreja ensina, à luz do Evangelho, que ‘a pena de morte é inadmissível, porque atenta contra a inviolabilidade e a dignidade da pessoa’, e empenha-se com determinação a favor da sua abolição em todo o mundo.”

 

Pontos de vista

Por Andrea Tornielli

A conclusão de um rumo

“Vejo a decisão do papa Francisco como uma conclusão consequente de um direcionamento. O papa João Paulo II começou este caminho e, alguns anos depois de sua publicação, o Novo Catecismo corrigiu o texto sobre a pena capital de um modo mais restritivo. Agora, Francisco deu um passo adiante. Acho que isso terá um impacto real entre os católicos que se mostram favoráveis à pena de morte. Entre eles, os norte-americanos, que começam a mudar de opinião. Agora, o catecismo — o texto geral da doutrina para os católicos — é absolutamente transparecente em relação ao tema.”

Vaticanista do jornal La Stampa

 

Por John Thavis

De volta aos holofotes

“Um efeito imediato da medida será levantar o tema da pena capital e devolvê-lo aos holofotes do debate público, especialmente em países onde a prática tem sido tolerada há muitos anos. Isso se tornou um assunto político em nações como os Estados Unidos, onde os eleitores católicos deverão prestar muita atenção às posições dos candidatos sobre a pena de morte. Essa decisão deixa claro que o esforço da Igreja por uma agenda ‘pró-vida’ é mais amplo do que a questão do aborto, e inclui todas as etapas da vida humana.”

Vaticanista, autor de The Vatican diaries (“Os diários do Vaticano”) e The Vatican prophecies (“As profecias do Vaticano”)

 

Por John Voll

Violência em nome da fé

“A campanha da Igreja Católica contra a pena de morte representa uma importante voz de oposição à violência cometida em nome da religião. A pena capital é apenas uma parte da questão mais ampla de se a violência é algo sempre religiosamente justificado. A voz da Igreja Católica pode dar uma  contribuição significativa em persuadir os governos a evitarem, oficialmente, o assassinato sancionado.”

Diretor do Centro para Compreensão Cristã-Islâmica da Universidade de Georgetown