Correio braziliense, n. 20162, 03/08/2018. Mundo, p. 13

 

Cristina pode perder escudo

03/08/2018

 

 

ARGENTINA » O juiz Claudio Bonadio, que convocou a ex-presidente para depor sobre propinas, vai tentar mais uma vez derrubar o foro privilegiado que a protege de ser detida. Um dos detidos no escândalo negocia colaboração

Como desdobramento da investigação sobre um dos maiores escândalos de corrupção da Argentina nos últimos anos, o juiz federal Claudio Bonadio deve requerer ao Senado, nos próximos dias, a remoção do foro privilegiado da ex-presidente Cristina Kirchner, que cumpre mandato de senadora desde o ano passado, segundo noticiaram os jornais La Nación e Clarín. Ela foi intimada a depor no próximo dia 13 sobre o esquema de pagamento de mais de US$ 160 milhões em propinas em troca da concessão de obras públicas.

O caso envolve ex-funcionários dos governos de Cristina (2007-2015) e do falecido marido Néstor Kirchner (2003-2007), além de grandes empresários, entre eles um que é ligado à família do atual presidente, Maurício Macri — adversário político do casal. Na quarta-feira, essa investigação, batizada de “Lava-Jato argentina”, levou à prisão de 12 suspeitos.

Bonadio já tinha requerido a remoção do foro da ex-presidente, com a intenção de prendê-la, no âmbito de outro processo, mas o pedido ainda não teve resposta dos congressistas. Na investigação das propinas, o magistrado está debruçado sobre oito cadernos com manuscritos feitos por Oscar Centeno, que foi motorista de Roberto Baratta, ex-subsecretário de Coordenação e Gestão do Ministério do Planejamento. Ambos foram presos nesta semana.

Segundo foi apurado, era Centeno quem levava malas com milhões de dólares a vários endereços, principalmente em Buenos Aires. A ex-presidente foi convocada a depor porque, conforme as anotações do motorista, houve entrega de propina em sua residência particular. Cristina deve ser a 18ª pessoa ouvida por Bonadio nessa investigação, mas ainda não se sabe se no dia 13 falará na condição de testemunha ou de investigada — o caso corre sob segredo de Justiça.

Como a hoje senadora está amparada pelo foro privilegiado, a Justiça não pode determinar sua condução coercitiva para depor. Os imóveis de sua propriedade estão protegidos contra mandados de busca e apreensão, e a ex-presidente não pode ser alvo de uma ordem de prisão preventiva. Em todas as investigações de que é alvo, ela nega as acusações e costuma afirmar que Bonadio é um juiz parcial, que atende aos interesses do presidente Mauricio Macri.

As prisões desta semana ocorreram após depoimento da ex-mulher do motorista Centeno. Ela confirmou ter acompanhado o ex-marido nas várias entregas de propina e relatou  que, nessas ocasiões, ficava aguardando dentro do carro. Entre os demais detidos estão o ex-secretário Baratta; o ex-ministro do Planejamento Federal Julio de Vido; os empresários Gerardo Ferreyra, da Electroingeniería, e Javier Sánchez Caballero, da construtora Iecsa; e o ex-secretário legal do Planejamento Federal Rafael Llorens.

A Iecsa pertencia até o ano passado a Ángelo Calcaterra, primo de Macri, do grupo Socma (Sociedad Macri). A imprensa argentina classificou Caballero como “braço direito” da família do presidente.

“Arrependido”

A Justiça começou ontem a ouvir os testemunhos dos 12 detidos no escândalo, entre eles Centeno. Fontes judiciais citadas pela imprensa argentina disseram que o motorista optou por se declarar na qualidade de “arrependido”, o que abre caminho para a colaboração com as investigações. Por sua vez, o empresário Gerardo Ferreyra negou as acusações: “Nunca paguei propina. Isso é um circo midiático”.

Também foram chamados para depor o ex-chefe de gabinete Juan Manuel Abal Medina e o ex-secretário-geral da Presidência e ex-diretor da Agência Federal de Inteligência (AFI) Oscar Parrilli, além de outros ex-funcionários citados nas anotações.

Segundo o Ministério Público, teriam sido movimentados “cerca de US$ 160 milhões em espécie”, acomodados em sacolas, provenientes de propinas que os empresários entregavam em troca da vitória em licitações de obras públicas. Os cadernos que deram origem ao processo foram entregues por uma fonte não revelada a um repórter do jornal La Nación, que os encaminhou à Justiça.

US$ 160 milhões

Total aproximado de propinas distribuídas no esquema denunciado pelo ex-motorista do Ministério do Planejamento