O globo, n. 31051, 12/08/2018. País, p. 4

 

ARMA, URNA E 1,7 MILHÃO DE ELEITORES EM JOGO

Chico Otavio

Vera Araújo

12/08/2018

 

 

Autoridades federais e estaduais fazem mapa sobre influência do crime e concluem: 12,8% dos pontos de votação estão em áreas dominadas por facções do tráfico e milicianos, que avançam e pretendem lançar candidatos próprios na política do Rio

Desde o Código Eleitoral de 1932, o voto é secreto no Brasil. No entanto, passados 86 anos, parte da população fluminense ainda precisa ser convencida de que tenha esse direito. São 1,7 milhão de eleitores, distribuídos em 637 locais de votação de áreas dominadas por facções criminosas no Estado do Rio, de acordo com levantamento que acaba de ser concluído pela Coalizão Eleitoral — um conjunto de autoridades federais e estaduais que atuarão na campanha do Rio. Esse mapa traduz, em números, uma percepção que intimida o exercício da democracia nase leiçõe sestaduais: o avanço da criminalidade em direção ao mundo da política formal. Os setores de inteligência da segurança pública já rastrearam e pretendem impedira candidatura de uma advogada ligada ao narcotráfico. No passado, ela foi presas oba acusação de ser pombo-correio entre os chefões presos. Agora, está filiada a um partido político, masa candidatura não foi confirmada. Casos de currais eleitorais —áreas onde o crime decide quem pode equem não pode fazer campanha—são recorrentes no Rio. Nas eleições de 2008 para prefeito do Rio, as Forças Armadas organizaram a Operação Guanabara para conter o crime. Em 2014, candidatos foram impedidos de fazer campanhas em favelas como a Rocinha, que já tinha uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP). Este ano, o risco permanece alto. Outro caso recente, também preocupante, foi em Japeri, na Baixada Fluminense. Mês passado, o prefeito Carlos Moraes (PP) foi preso por suspeita de associação com o tráfico. A defesa de Moraes nega qualquer associação do prefeito a traficantes.

Pelo mapa, os locais dominados por facções criminosas representam 12,76% do total de 4.993 pontos devotação espalhados pelo estado. São 338 locais controlados pelo Comando Vermelho (CV), 171 por grupos milicianos, 86 pelo Terceiro Comando Puro (TCP), 24 pelos Amigos dos Amigos (ADA) e 18 pontos sem grupo definido. Outra tabela revela que, do total de 1,7 milhão de eleitores inscritos nesses locais (14,6% do total do estado), 909 mil estão em áreas do CV, 523 mil de grupos milicianos, 245 mil do TCP, 73 mil do ADA e 37 mil sem grupo definido. Garantir o livre direito de escolha a esses cidadãos é o principal desafio das forças de segurança para as eleições de outubro. Batizado de “Cenários de georreferenciamento dos locais de votação”, o mapa é o ponto de partida e mostra cada reduto controlado por traficantes e milicianosnoRio. OGLOBOnãoteve acesso à imagem do mapa, mas obteve seus números.

MANDATOS IMPEDIDOS

Na semana passada, após consultar o mapa em seu gabinete, o secretário estadual de Segurança, general Richard Nunes, anunciou ao GLOBO o apelo central da estratégia que norteará as ações nas eleições: “Vote sem medo”. Ao saber quais são as áreas mais problemáticas do Rio, priorizando-as no que diz respeito ao trabalho de inteligência, fiscalização e policiamento ostensivo, o general acredita que convencerá esse eleitor de que o voto é realmente secreto e as facções estão blefando quando dizem que há como saber em quem a comunidade votou. O mapa também ajudará as forças públicas a criarem obstáculos a candidaturas francamente comprometidas com as facções criminosas. Integrada pelo Tribunal Regional Eleitoral do Rio (TRE-RJ), por órgãos de segurança e pelo Ministério Público Eleitoral, a Coalizão Eleitoral projetou um mapa que aponta o amplo domínio da milícia em áreas de votação distribuídas pela Zona Oeste (como Campo Grande, Santa Cruz, Sepetiba, Itaguaí, Coroa Grande) e Jacarepaguá. Os pontos do-

minados pelas facções do tráfico estão menos concentrados, mas apresentam-se principalmente na Região Metropolitana , com áreas que chegam a Niterói e São Gonçalo.

Local de votação é o prédio (em geral uma escola) usado pelo TRE para instalar as seções eleitorais (salas onde ficam as urnas). Cada uma, que em geral equivale a uma seção eleitoral, tem entre 350 e 500 eleitores. Ao divulgar os resultados eleitorais por seção, a política de transparência da Justiça Eleitoral criou um paradoxo: os eleitores de comunidades controladas por facções desconfiam que há como saber em quem votou. Uma juíza que já atuou em eleições passadas disse que, em Teresópolis, na Região Serrana, um candidato ligado ao crime subiu ao palanque para ameaçar eleitores, garantindo que havia meios de controlar a votação.

— E o povo acredita nisso. Acredita que o voto não é secreto, que a urna eletrônica pode ser fraudada, que hackers vão entrar. Os criminosos crescem na insegurança e ignorância do povo — lamentou a magistrada. O presidente do TRE-RJ, desembargador Carlos Eduardo da Fonseca Passos, ressalta que a urna eletrônica somente grava a indicação de que o eleitor já votou. Pelo embaralhamento interno dos dados e outros mecanismos de segurança, garante, não há qualquer possibilidade de se verificar em quais candidatos ele votou. Fonseca Passos disse que, além disso, há diversos mecanismos de auditoria e verificação dos resultados que podem ser usados por candidatos e coligações, pelo Ministério Público, pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e pelo eleitor. —Além disso, a urna eletrônica não é vulnerável a ataques de hackers. Funciona de forma isolada. Não dispõe de qualquer mecanismo que possibilite sua conexão a redes de computadores, como a internet — acrescentou Passos. Para enfrentar as particu--

laridades do Estado do Rio, onde o seu próprio levantamento mostrou a presença de 991.546 eleitores em áreas marcadas por disputas territoriais entre grupos armados (outro cruzamento do mapa), o general Richard já montou um gabinete de crise a exemplo do que foi feito na greve dos caminhoneiros. A operação vai se chamar Garantia de Votação e Apuração.

— Se as eleições acontecessem hoje, já saberíamos o que fazer, como desdobrar as forças no território — afirma o general. O presidente do TRE disse que também estuda a possibilidade de decretar medida judicial denominada tutela antecipada de evidência, depois da votação, que poderá impedir o exercício do mandato de candidato comprovadamente apoiado pelo crime organizado.