O globo, n. 31093, 23/09/2018. País, p. 8

 

Agenda de Guedes esbarra na resistência de Bolsonaro

Flávia Barbosa,

Cassia Almeida

Danielle Nogueira

Marcello Corrêa

23/09/2018

 

 

Adepto do Estado mínimo e de reformas, economista ainda não conseguiu aval do presidenciável para suas propostas

O economista Paulo Guedes acalenta, há mais de 30 anos, o sonho de liderar, do Ministério da Fazenda, a implantação de uma agenda ultraliberal na economia. Por ela, o Estado seria mínimo, até na saúde; não haveria despesas obrigatórias; e brasileiros teriam de cuidar mais de si —incluindo de sua aposentadoria. Guru de Jair Bolsonaro (PSL), líder da corrida presidencial, Guedes nunca esteve, portanto, tão perto da realização. Não fosse por dois obstáculos nada triviais, além do veredicto das urnas: a complexidade das propostas e a resistência do capitão às ideias que abastecem seu “Posto Ipiranga”.

Aos 69 anos, investidor milionário, Guedes acredita que o aperto fiscal vem sendo negligenciado pelos governos “da social-democracia” desde 1985, criando uma bola de neve de gastos que rendeu alto endividamento e uma fatura anual de quase R$ 400 bilhões em juros. Para o economista, é hora de começar a fazer caixa:

—Vamos desestatizar. Guedes defende a privatização do maior número possível das 146 estatais, para levantar R$ 700 bilhões. Rechaça argumentos de que empresas como a Petrobras têm função em políticas públicas, como Caixa e Banco do Brasil, e diz que “não aceita isso como regra”. Acredita que até mesmo hospitais e universidades poderiam ser repassados à iniciativa privada, mas nega ser dogmático. O que é preciso, defende, é “marcar território”.

—Um social-democrata diz assim: ‘Eu gosto de estatais. Uma ou outra eu posso vender’.

Foi o que eles fizeram. O liberal-democrata diz: ‘Eu não gosto de estatais, mas deixo algumas’. A regra é a seguinte: o setor privado é que investe — afirma, embora reconheça que, além de precisar de aval do Congresso, a venda de estatais abateria, hoje, no máximo 17% da dívida. O economista também advoga uma reforma administrativa para estancar o terceiro maior conjunto de despesas da União, o funcionalismo. Guedes, porém, não fornece detalhes; só diz que “aumento automático” de vencimentos está fora de questão e descarta propor o fim da estabilidade:

— Não preciso mandar embora, basta não ter essa atitude complacente. O Brasil está afundando e tem uma turma aí que nem sente: tem estabilidade de emprego, generosa aposentadoria, salário indexado. Para a Previdência, Guedes não só defende a proposta de reforma encaminhada pelo governo Temer como decreta a insolvência do atual modelo de repartição (trabalhadores da ativa financiamos aposentados). E leque rum modelo de capitalização (o trabalhador faz sua própria poupança para o futuro). Mas não apresenta o custode transição enema forma de financiá-lo. Prefere um argumento moral:

— Estamos indo para o alto mar no avião em que a gasolina vai acabar. Acho um crime contra as gerações futuras nós condenarmos nossos filhos e netos a entrarem no mesmo avião.

Orçamento "zero"

O planejamento federal também passaria por mudança radical. Guedes defende que o Orçamento seja base zero, ou seja, sem qualquer vinculação entre receitas e despesas.Hoje, diversas receitas são constitucionalmente destinadas a gastos específicos. Para o economista, a medida obrigaria rigor fiscal e maior comprometimento dos parlamentares:

— O ideal é a desvinculação total. Acaba esse jogo (de toma-lá-dá-cá na negociação de apoio). Em vez de ser um picareta, pedir um cargo, vai chegara Brasília e decidir quanto vai para segurança, defesa, saúde. Essa é a função do representante do povo. Guedes admite que ainda não tem uma proposta pronta eque há dificuldades para convencer três quintos do Congresso a acabar com despesas obrigatórias em saúde e educação, por exemplo. Mas ele defende que é preciso fechar brechas:

— Hoje, o Orçamento é aprovado na quinta-feira à noite, mas você aprova Zona Franca de Manaus por 20 anos (R$ 24 bilhões de renúncia fiscal em 2019) na quarta-feira à tarde, quando está todo mundo distraído. As bússolas da agenda de Guedes estão dadas. Resta saber se Bolsonaro está disposto a ser orientado por elas. Ao longo de sete mandatos, o deputado praticamente não se engajou em questões econômicas. E seu histórico de votações se choca com as proposições do economista que escolheu para ser formulador e fiador de seu programa. Bolsonaro, por exemplo, votou recentemente pela prorrogação da Zona Franca de Manaus e pela aposentadoria integral ao servidor em casos de invalidez. Negou votos ao Plano Real, à quebra do monopólio das teles e do petróleo, a duas reformas previdenciárias e duas revisões administrativas. Já presidenciável, evitou endossar ideias de Guedes — o qual batizou de Posto Ipiranga por ele ter as respostas para assuntos econômicos, dos quais manifestamente não entende. No início deste mês, Bolsonaro foi além e negou que privatizaria a Caixa, o Banco do Brasil e o que chamou de “miolo” da Petrobras. No assunto da semana, o candidato desautorizou o economista, que propôs a criação de um tributo nos moldes da CPMF e uma alíquota única de Imposto de Renda( que prejudicaria trabalhado resmais pobres ). O guru cancelou, desde então, a participação em eventos nos quais explicaria os planos econômicos.

Sobram críticas

Fora da formação dos governos desde a redemocratização, e sem poupar críticas aos economistas que se revezaram na Esplanada nas últimas três décadas, Guedes viu no voo solo de Bolsonaro a chance de finalmente alcançar o protagonismo que sempre almejou na formulação da política econômica brasileira. Mas ele admite reservadamente que seu programa ainda não está pactuado com o candidato.

Na Previdência, por exemplo, Bolsonaro alega ter forte ligação com os militares e policiais, o que limitaria uma reforma que abranja as categorias. A extensão das desvinculações também não foi definida, bem como alista de estatais a serem privatizadase as mudanças tributárias. Guedes acredita que a racionalidade econômica, por seu potencial de bons resultados e dividendos eleitorais, acaba se sobrepondo à política. Por via das dúvidas, defendeu semana passada que os partidos tenham “superpoderes” na Câmara, com o voto da maioria da bancada se sobrepondo às escolhas individuais. Levou, segundo ele, um pito de Bolsonaro, segundo o qual Guedes não entende nada de política. Mas, mesmo que convença Bolsonaro, sua “agenda liberal extremada” antecipa difícil embate com o Congresso, avalia o economista Luiz Roberto Cunha, da PUC-Rio:

— Exige muita negociação. E Bolsonaro vem dizendo que não vai negociar, o que pode criar uma crise política. E ele tende a enfrentar reação dos movimentos sociais. Além disso,Bol sonar o não tem nomes para formar uma equipe econômica no seu staff atual. Só tem o Paulo Guedes. O problema de Bolsonaro é mais político do que econômico.