O Estado de São Paulo, n.  45712, 13/12/2018. Espaço aberto, p. A2

 

Impulso ferroviário e regulação excessiva

José Serra
13/12/2018

 

 

A história ferroviária do Brasil é um inventário de grandes oportunidades perdidas. E o resultado desse erro histórico é visível por toda parte. A dimensão de nossa rede de ferrovias e o volume transportado estão muito aquém da dimensão da economia brasileira. Sétima economia do mundo, o Brasil está na 88.ª colocação no ranking internacional de qualidade da infraestrutura ferroviária.

Nossas ferrovias transportam esquálidos 15% das cargas nacionais (em toneladas por quilômetro útil) – proporção semelhante à que prevalecia em meados da década de 1990. Em extensão de trilhos ativos, retrocedemos aos níveis do começo do século 20, apesar dos avanços em produtividade e segurança das concessões ferroviárias atuais.

No transporte urbano de passageiros, a participação do modo ferroviário é também pequena – quadro imperdoável para um país tão urbanizado. Nossas grandes cidades sofrem com engarrafamentos que asfixiam sua produtividade e castigam o morador da periferia. No transporte de passageiros interurbano, é quase total nossa dependência do modo rodoviário.

Parte do nosso atraso ferroviário se deve, é óbvio, à falta de investimentos públicos no setor, mesmo quando se somam as concessões ao setor privado. Temos apenas 20 mil km de ferrovias ativas, 51,5 mil km ainda estão nas planilhas de projeto e outros 8,5 mil km jazem abandonados entre a ferrugem e o capim.

É preciso expandir nosso parque ferroviário, para carga e passageiros. Um modelo plausível seria preservar a presença estatal nos segmentos em que seja de fato necessária e, ao mesmo tempo, impulsionar investimentos privados em regime de simples autorização, quando houver interesse do mercado. O regime de autorização, menos complicado e mais seguro para o investidor, pode deslanchar nosso potencial ferroviário, abandonando-se as amarras e os exageros regulatórios e burocráticos que retardam o avanço da nossa infraestrutura e não têm justificativa econômica ou jurídica. Em alguns casos, derivados do pseudonacionalismo; em outros, de análises microeconômicas que dão muito peso a falhas de mercado e nenhum peso às falhas de regulação.

No modelo de autorização, o investidor retém o patrimônio, sem compromisso de devolução ao poder público, que, em contrapartida, não faz gastos nem assume nenhuma coobrigação. A experiência bem-sucedida dos Estados Unidos na adoção do modelo de autorização é muito instrutiva. Só no mercado de transporte de cargas, 574 empresas ferroviárias atuavam em 2015 em regime de exploração privada de 223 mil km de linhas ativas, com receitas anuais de US$ 72 bilhões. Lá o poder público atua primordialmente no mercado de passageiros.

É essencial dotar o Brasil de um marco regulatório e legal capaz de incorporar as melhores práticas disponíveis no cenário internacional em matéria de transporte ferroviário. Abandonemos a tentação de reinventar a roda. É possível aproveitar o que há de mais bem-sucedido, seja na legislação nacional em outras áreas de infraestrutura, seja na experiência bem-sucedida de outros países.

Na verdade, podemos começar adaptando dispositivos já presentes no arcabouço jurídico nacional, a exemplo das leis que atraíram investimentos privados para os serviços de telecomunicações e levaram à expansão e popularização da telefonia móvel – fruto, aliás, da imensa capacidade de trabalho de Sérgio Motta, que nos deixou há 20 anos. Também podemos aproveitar elementos da legislação que disciplina o Operador Nacional do Sistema Elétrico.

O ideal é que o investidor privado seja autorizado pelo poder público a construir e operar sua própria ferrovia. Num país em que as rodovias são ubíquas, não se deve temer o risco de “monopólio natural” de novas ferrovias: não há rincão do Brasil em que as ferrovias não enfrentarão como teto de preços o custo do transporte rodoviário.

Quanto aos trens de passageiros, ainda prevalece o mito de que são sempre antieconômicos, só se tornando viáveis com pesados subsídios estatais. No entanto, a realidade pode ser diferente. As experiências japonesa e norte-americana mostram que a exploração imobiliária do entorno das estações permite a sobrevivência de serviços de transporte de passageiros integralmente privados.

Mais ainda, é possível criar instrumentos urbanísticos que incentivem novas linhas. Um deles é o reparcelamento (land adjustement), expediente comum em países asiáticos, pelo qual imóveis antigos são substituídos por novos, mais adequados ao empreendimento ferroviário.

Guardadas as óbvias diferenças, vivemos hoje uma situação algo semelhante à dos Estados Unidos em 1980, quando não dispunham de um marco regulatório favorável a novos investimentos privados na rede ferroviária. A paralisia foi superada pelo Staggers Rail Act – um novo marco legal, mais flexível, menos intervencionista e lastreado em autorizações –, responsável pelo notável incremento da produtividade e do volume transportado nas ferrovias, concomitante à redução de tarifas.

É recomendável, no Brasil, abrir ao investidor privado a possibilidade de construir com recursos próprios e explorar ferrovias mediante simples autorização do poder público. Temos de dar às empresas ferroviárias – às existentes e às que certamente entrarão no mercado – liberdade para a proposição do traçado das linhas, de preços, níveis de serviço e suas especificações. No caso dos portos privados, por exemplo, a possibilidade de construção de linhas férreas aumentaria em muito a eficiência do setor, acirrando a competição entre os portos e reduzindo o custo dos fretes. Uma forma quase instantânea de reduzir parte do proverbial custo Brasil.

Proposta legislativa nesse sentido já está tramitando rapidamente. Que os barbantes da regulação excessiva não sejam capazes de segurar o impulso irresistível desse novo modelo ferroviário.

SENADOR (PSDB-SP)

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Atos de coragem

13/12/2018

 

 

A flexibilização da Lei de Responsabilidade Fiscal é um ato de escárnio de um Congresso Nacional em dissintonia com a Nação. A maioria dos brasileiros expressou claramente o desejo de renovação política e de mudança de comportamento dos nossos governantes nas eleições de outubro. O recado das urnas manifestou um veemente repúdio à corrupção, à ineficiência do Estado e ao sequestro da política pelos interesses corporativistas. Mas eis que o Congresso Nacional, no apagar das luzes da atual legislatura, aprova uma nova medida que premia a irresponsabilidade dos governantes, prejudica a população e pune os políticos sérios que tiveram de adotar medidas duras e impopulares para honrar o teto de gastos públicos.

A Lei de Responsabilidade Fiscal é vital para garantir os fundamentos da gestão responsável dos recursos públicos. Prefeitos e governadores podem ser punidos com suspensão de recursos federais, de empréstimos e até mesmo com a perda de mandato se gastarem mais de 60% da receita corrente líquida com pessoal. E por que esse limite é tão importante? Porque ele evita dois males. O primeiro é que a inexistência de um teto de gastos oferece um incentivo perverso a governantes irresponsáveis: em vez de investirem na melhoria da qualidade do serviço público para o cidadão, preferem distribuir empregos públicos a seus cabos eleitorais e aliados políticos. O segundo é evitar que políticos perdulários tornem inviável o governo dos seus sucessores, deixando os cofres públicos vazios e com dívidas impagáveis.

Winston Churchill, o célebre primeiro-ministro britânico, dizia que a função do Parlamento não é apenas fazer boas leis, mas, principalmente, impedir que más leis sejam aprovadas. A leviandade dos parlamentares brasileiros ao aprovarem a “flexibilização” da Lei de Responsabilidade Fiscal exige uma resposta dura das instituições. O presidente Michel Temer tem o poder – e o dever – de vetar a medida.

Caberá ao próximo Congresso a responsabilidade de ir muito além da preservação da Lei de Responsabilidade Fiscal. Há duas medidas necessárias que ajudarão a disciplinar as finanças municipais antes das eleições dos novos prefeitos, em 2020.

A primeira consiste em limitar a utilização do Fundo de Participação dos Municípios. É imprescindível vetar o uso dos recursos desse fundo para o pagamento de despesas correntes, como é o caso do gasto com pessoal. Cidades deveriam ser obrigadas a arcar com as despesas da máquina pública com recursos provenientes da arrecadação dos tributos municipais. Se não forem capazes de financiar os gastos do governo com suas próprias receitas, serão forçados a aumentar os impostos ou ser mais eficiente na fiscalização e cobrança de tributos devidos. Caso não consigam tornar viável o custeio de suas despesas, terão, em última instância, de se fundir com outros municípios. Uma cidade, assim como uma pessoa, não se pode autoproclamar independente se não for capaz de viver com recursos próprios. Assim, o dinheiro do Fundo de Participação dos Municípios só poderia ser utilizado para investir na melhoria da qualidade do serviço público – o que o cidadão aguarda avidamente.

A segunda medida consiste em proibir a remuneração de vereadores de cidades até 50 mil eleitores. Durante muitos anos, vereadores das pequenas cidades não recebiam remuneração por sua atividade. Tratase de uma boa prática que precisa ser ressuscitada. Estudo recente publicado pela Frente Nacional dos Municípios revela o absurdo de transplantar o mesmo arcabouço administrativo das grandes cidades para os pequenos municípios. Nas grandes metrópoles, com população acima de 500 mil habitantes, a média de servidores públicos é de 17/mil habitantes. Já nas cidades com população até 20 mil habitantes, a média é de 50/mil. É preciso acabar com salários, cargos e cabide de empregos que aumentam o custo da máquina pública e não trazem melhoria da qualidade dos serviços públicos para o cidadão.

Na gestão pública, temos de mudar a cultura da sinecura para a da meritocracia. Isso significa separar o joio do trigo no funcionalismo público. O primeiro precisa ser extirpado, o segundo tem de ser valorizado e reconhecido. Há um mito de que não se pode demitir funcionário público. Não é verdade. O artigo 41 da Constituição da República determina as condições em que se pode demitilos. O parágrafo 3.º é claro. O servidor pode ser posto em disponibilidade e receber, como “remuneração proporcional ao tempo de serviço”, 1/35 (homens) e 1/30 (mulheres) para cada ano de serviço prestado. Ou seja, a extinção de cargos e o corte substancial de pessoas podem proporcionar uma economia significativa, capaz de financiar os vencimentos dos funcionários afastados.

Já os bons servidores públicos precisam ser valorizados, capacitados e ter um plano de carreira que os motive a trabalhar com senso de propósito público, metas claras de desempenho e meritocracia. Ana Carla Abrão, colunista do Estadão, vem insistentemente enfatizando a necessidade de promovermos uma revolução nos recursos humanos do setor público. E ela está absolutamente certa. A existência de uma burocracia pautada pelo espírito público e focada em resultados é vital para melhorar a qualidade do serviço público, a eficiência do Estado e ainda diminuir a corrupção.

Há muita gente talentosa na gestão pública que também aguarda os atos de coragem dos novos governantes para destravar as amarras do Estado, reduzir o excesso de burocracia e o custo incompatível da máquina pública com a qualidade do serviço que presta à população. O resgate da credibilidade da política começa pelo respeito dos governantes à vontade expressa pelos eleitores nas urnas.

PRESIDENTE DO CONSELHO DO CENTRO DE LIDERANÇA PÚBLICA (CLP), É AUTOR DO LIVRO ‘10 MANDAMENTOS – DO PAÍS QUE SOMOS PARA O BRASIL QUE QUEREMOS’