Correio braziliense, n. 20234 , 14/10/2019. Política, p. 2

 

A importância dos ciclos eleitorais

Bernardo Bittar, Gabriela Vinhal e Denise Rothenburg

14/10/2019

 

 

ELEIÇÕES 2018 » Especialistas veem semelhanças nas disputas presidenciais desde a redemocratização. Avaliação é de que, independentemente do vencedor, haverá uma trégua no Congresso para testar a governabilidade

A fragilidade da economia brasileira e os altos índices de rejeição à classe política abasteceram as propostas dos candidatos que disputaram as eleições presidenciais de 1989. Vieram o Plano Real, os programas sociais e escândalos de corrupção. Novamente, o Brasil sucumbiu à crise financeira e ao descrédito aos políticos. A renovação do Congresso ocorreu no último domingo. E o padrão discursivo utilizado por Fernando Collor (PTC) 30 anos atrás conversa com as ideias do candidato do PSL, Jair Bolsonaro, que hoje disputa o segundo turno das eleições presidenciais com Fernando Haddad (PT), cujo argumento é o mesmo usado por Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em 2002 — a igualdade entre ricos e pobres. Para especialistas, o caráter cíclico da política brasileira caracteriza a democracia, permitindo que o poder mude de mãos e novas soluções sejam propostas — e encontradas — a cada novo governo.

O professor de história política contemporânea da Universidade de Brasília (UnB) Antônio José Barbosa acredita que o país viveu momentos delicados, mas não vê a possibilidade de um caos absoluto com a vitória dos petistas nem dos liberalistas ao Planalto. “O país está maduro o suficiente para não embarcar em situações que coloquem em risco a democracia. Há a possibilidade de as coisas irem se acomodando, voltarem para o leito da normalidade alguns meses depois de iniciado o governo”, acredita. Tradicionalmente, o presidente eleito encontra uma boa vontade atípica do Congresso para avaliar as medidas propostas nos primeiros 100 dias. “Isso não vai mudar. Quem ganhar terá a chance de testar a governabilidade”, detalha.

Ao contrário do que ocorreu em 2014, quando Dilma Rousseff (PT) foi eleita com 3% de diferença contra Aécio Neves (PSDB) não deve se repetir, segundo as últimas pesquisas. O último levantamento do Datafolha aponta Bolsonaro com 16 pontos percentuais à frente de Haddad. “Estamos vendo o cansaço da sociedade civil, que foi às ruas em 2013 para pedir mudanças. Aquelas manifestações culminaram com a eleição do domingo passado. Há um divórcio entre a política e a sociedade. Isso explica a mudança radical do mapa político brasileiro”, complementa o especialista. Barbosa também lembra que os efeitos da Lava-Jato são “muito fortes e mostram como a corrupção está entranhada no sistema político”.

Para a professora de ciência política da Universidade de Brasília (UnB) Flávia Biroli, no entanto, o sentimento de antipetismo, após os escândalos da Operação Lava-Jato não ficou contido apenas no PT, mas atingiu o sistema político e abalou o equilíbrio eleitoral. “Chegamos em 2018 com o antipetismo ampliado por um candidato de extrema direita, que se torna uma visão autoritária da própria disputa”, complementa. A docente destaca que essa é a primeira vez que um presidenciável com chance de vitória nas urnas não se mostra disposto a seguir o rito do processo eleitoral: “Atacou o sistema de votação, não vai aos debates e já afirmou que não se contentará com um resultado negativo”.

 

Olhar regional

O Fiat Elba, pivô do impeachment de Fernando Collor, e as pedaladas fiscais, que retiraram Dilma Rousseff do poder, mostram que, em diferentes momentos, a população foi explícita ao sinalizar que não tolera roubo de dinheiro público. A história perpassa, inclusive, no fim do primeiro mandato de Lula, quando veio à tona o primeiro caso grande de desvio de recursos, o mensalão. Os discursos que embasaram a campanha pela reeleição de Lula, em 2006, e de Dilma, em 2014, tentavam afastar a imagem de ambos nas investigações. Em contraposição, investiram na comunicação para mostrar os números de desenvolvimento do país, que vieram com o ex-presidente petista desde 2003.

Já na primeira vitória de Lula, quando foi ao segundo turno com José Serra (PSDB), o petista aproveitou o desgaste de oito anos de governo tucano para deslanchar a narrativa petista. Com um olhar regional, o PT, que na década de 1990 era querido pela classe média, conquistou o eleitorado mais pobre com o discurso de combate às privatizações, à extrema pobreza e à desigualdade social. Ao passo que, no passado, a população apostava no liberalismo; em 2002, acreditava a estatização. “Ali, o PT conseguiu emplacar no PSDB a identidade de partido de elite. O Lula, que venceu as eleições, era diferente do Lula de 1989. O PT se tornou uma sigla de centro-esquerda, que conversava tanto com o mais pobre quanto com o empresário. Muito pelas alianças construídas”, justifica Biroli.

Foi o que precisou para conquistar o Planalto. Como num ciclo, o anterior foi protagonizado pela sigla tucana, que se aproveitou da má fase econômica do país e o alto índice de inflação para propor o Plano Real, que norteou a campanha e os discursos de Fernando Henrique Cardoso em 1994. Antes ministro da Fazenda do governo de Itamar Franco, o tucano se candidatou e venceu naquele ano e em 1998, ambos no primeiro turno — é o único presidenciável que venceu sem segundo turno até agora. “O país começou a subir. Ele criou um mecanismo genial que deu certo. A reeleição foi baseada na manutenção do sucesso do Real”, destaca.

Assim como em 1989, em que um partido nanico saiu vitorioso, 2018 estampa o crescimento do PSL, de Bolsonaro. Um cenário que revela uma ruptura no sistema eleitoral, quando havia apenas dois partidos protagonistas na disputa presidencial: PT e PSDB. As siglas, que sempre tiveram posturas diferentes para os problemas do país, competiam diretamente nas eleições desde 1994. “Os dois nasceram com a transição da ditadura para democracia e com a Constituição de 1988, que estabeleceu limites dos agentes do regime militar, e criou o pacto social. Durante as eleições, a Carta Magna foi imprescindível para nortear as campanhas políticas. Os dois partidos respeitavam isso, mesmo com pensamentos distintos”, conclui Biroli.

 

Frases

"O país está maduro o suficiente para não embarcar em situações que coloquem em risco a democracia. Há a possibilidade de as coisas irem se acomodando”

Antônio José Barbosa, professor de história contemporânea

"Chegamos em 2018 com o antipetismo ampliado por um candidato de extrema direita, que se torna uma visão autoritária da própria disputa”

Flávia Biroli, professora de ciência política da UnB

 

A história recente

Confira os temas que marcaram as eleições presidenciais desde a redemocratização

 

1989

»  A primeira eleição direta para presidente da República depois da ditadura militar teve como finalistas no segundo turno o então candidato do PRN, Fernando Collor de Mello (foto), um partido que se fortaleceu com a campanha collorida, e o do PT, Luiz Inácio Lula da Silva. Os colloridos acusavam o PT de querer dividir propriedades produtivas, de implantarem o sistema de Cuba no país e, de quebra, acabarem com a propriedade privada. Lula, por sua vez, falava em não pagar a dívida externa. Paralelamente ao debate do contra tudo e contra todos, a raiva dos políticos, desgastados após o fracasso de sucessivos planos econômicos, também impera.

 

1994

»  Com o governo Collor tragado pela corrupção e apeado mais cedo do cargo num processo de impeachment, o governo Itamar assume. O sucesso do Plano Real montado pela equipe do então ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, feito candidato pelo PSDB, o leva à vitória no primeiro turno. FHC (foto) faz uma campanha na linha “vamos em frente, estamos no rumo certo”. O PT, com um discurso contra o Plano Real, tem sua segunda maior derrota num processo eleitoral.

 

1998

»  Depois de aprovar a reeleição, o PSDB vai para as ruas com o discurso de que uma vitória do PT poderia comprometer os ganhos da economia nos últimos quatro anos. Mencionava, especialmente, a estabilidade econômica. O PT começa ali a formatar o discurso contra as privatizações e a defesa de projetos sociais. Fernando Henrique, mais uma vez, vence no primeiro turno, mas com uma folga um pouco maior quanto da primeira vez: 53% a 21%.

 

2002

»  Diante do desgaste natural, depois de oito anos no poder, o candidato do PSDB, José Serra, era o candidato da continuidade tentando emplacar o discurso da mudança. Não colou. Lula (foto) chega ao segundo turno na liderança, com um discurso voltado à necessidade de distribuição de renda e atenção aos mais pobres. Divulgou a carta aos brasileiros, em que prometia estabilidade econômica, reformas e fim da corrupção. O PSDB começaria ali uma guerra interna e uma série de derrotas.

 

2006

»  Assim como o PSDB, em 1998, usou o discurso de que o Real sofria riscos se o PT vencesse, em 2006 foi a vez de Lula, com o seu partido desgastado pelo mensalão, partir para o discurso do medo. No segundo turno, contra Geraldo Alckmin, os petistas acusaram os tucanos de quererem privatizar o Banco do Brasil, a Caixa Econômica e a Petrobras e colocar em risco o Bolsa Família. Alckmin passa o curto período na defensiva. Tem menos votos no segundo turno do que no primeiro.

 

2010

»  Lula tenta sair do desgaste natural de oito anos de governo sacando Dilma Rousseff (foto) da cartola. A “novidade”, uma mulher para administrar o país, vem colada à imagem de gestora, defensora dos inocentes, mãe do Plano de Aceleração do Crescimento. Lula espalha obras e promessas pelo país. Conta com isso, com a ajuda do PIB, que chega a 7,5% o maior em 24 anos. Dilma vence no segundo turno contra José Serra, que, desta vez, era o candidato da mudança. Mas o povo opta pela continuidade.

 

2014

»  A Operação Lava-Jato, deflagrada em março daquele ano, e as manifestações que haviam chacoalhado o país em 2013 servem como pano de fundo para embalar o então candidato do PSDB, Aécio Neves. Dilma, por sua vez, diz que faria o “diabo” para vencer a eleição. O segundo turno acirrado leva o PT à vitória no fim da apuração dos votos. Dois anos depois, Dilma estaria afastada.

 

2018

»  Nos bastidores das manifestações de 2013 e da disputa acirrada de 2014 entre tucanos e petistas, Jair Bolsonaro começava a construir sua campanha para chegar a este ano como candidato num caminho parecido com aquele que trilhou Fernando Collor, ou seja, por um pequeno partido. Com um cenário parecido com o do governo Sarney — crise econômica e o governo Michel Temer em frangalhos —, ele ganha estofo depois das gravações de Joesley Batista que colocam o PSDB no bolo da corrupção. Assim, o capitão reformado chega ao segundo turno. Como Collor, não expõe totalmente seu plano econômico. Faz uma campanha contra “tudo o que está aí” e “contra o PT”. Os finalistas chegam ao segundo turno depois de passarem o primeiro turno meio interditados: Bolsonaro, desde a facada, tem sua campanha restrita ao seu estado de saúde e ao dia em que sairia do hospital. O PT, por sua vez, passou a maior parte da disputa dizendo se Lula poderia ou não ser candidato. Até aqui, nenhum dos dois disse claramente ao que virá. Pelo visto, o eleitor dará um cheque em branco ao vencedor.