Correio braziliense, n. 20228 , 08/10/2018. Política, p.4

Entre o capitão e o professor

Leonardo Cavalcanti

 

 

15 de fevereiro de 2017. Na sala vizinha ao estúdio da TV Brasília, Jair Bolsonaro, sentado numa cadeira, com um pano envolto no pescoço para aparar pó facial, é maqueado para entrar no programa ao vivo dali a alguns minutos. Quando avista um assessor pelo espelho, faz uma piada: “Se tiver foto aqui, viraliza”. O capitão reformado do Exército tentava disfarçar a tensão com as brincadeiras, como se quisesse demonstrar que não levava tão a sério aquele universo de câmaras e entrevistadores. O improviso das falas e dos gestos imperava.

9 de maio de 2018. Aparentando mais segurança, Bolsonaro diz ter certeza de que herdará votos do ex-ministro do Supremo Joaquim Barbosa, que, no dia anterior, havia anunciado a saída do jogo eleitoral: “A leitura que eu faço é que a maior parte dos votos dele virá para mim. Até porque esse eleitor não sabe que ele é de esquerda”. Ali mesmo, no programa CB.Poder — uma parceria entre o Correio e a TV Brasília —, ele anuncia como será beneficiado. “Agora, o pessoal começa a mostrar a verdadeira face dele no tocante a isso (a posição política de Barbosa, supostamente de esquerda).” O improviso das falas e dos gestos ainda imperava.

Em dois tempos, separados por pouco mais de um ano, é possível entender o fenômeno Jair Bolsonaro e os 49 milhões de votos. O primeiro ponto está na improvisação de uma campanha sem marqueteiro oficial, mas capaz de mobilizar um sem-número de colaboradores e apoios espontâneos, o tal “pessoal” que mostraria, entre outros trabalhos ao longo da campanha, a verdadeira face de Barbosa. O segundo aspecto está no estilo direto de Bolsonaro, que caiu no gosto de boa parte do eleitor num dos momentos mais delicados da história do país.

 

Rajadas

É como se houvesse uma simbiose entre eleitor e candidato, sem que nunca fosse preciso Bolsonaro mudar completamente o discurso. Ao longo da campanha, ele exterminou uma série de mitos eleitorais. É que, de forma geral, acadêmicos e jornalistas analisam eleições a partir de semelhanças. A dificuldade é que, se há uma marca desta campanha, ela está na diferença em relação às anteriores. E, de uma única rajada, é possível perceber três pontos que não dificultaram a vida do capitão reformado do Exército: a ausência de um marqueteiro oficial, o pouco tempo de televisão e a falta de alianças formais.

A quebra de parâmetros da campanha bolsonariana é visível quando o núcleo decisório se movimentou sem um especialista em comunicação a tiracolo, a baixíssima exposição no programa eleitoral em contrapartida à atuação sem precedentes nas redes sociais e um adesismo de caciques políticos apenas nas últimas horas. A parte escusa, denunciada por adversários na reta final — mas que só deve ter a extensão medida no futuro — está na atuação de apoiadores do capitão reformado na disseminação de grupos fechados no WhatsApp, principalmente de eleitores com perfis mais religiosos.

 

Iconoclasta

Por mais que tenha pego os observadores da política de surpresa, Bolsonaro mantém o mesmo estilo desde a campanha de vereador pelo Rio de Janeiro, em 1988, quando venceu com 11.062 votos. O capitão, então com 33 anos, usava uma motocicleta para pedir votos. “Era mais veloz e gastava menos combustível”, disse na época, em entrevista ao Jornal do Commercio. Foi eleito pelo PDC, depois de procurar os antigos PMDB e PFL. “O meu partido foi o que menos me exigiu, 20% dos cargos de confiança. Nas demais legendas, as exigências eram maiores”, disse.

“Ele não é fluente em politiquês, o que parece ser o mais forte atributo”, disse ao Correio o marqueteiro norte-americano Arick Wierson, que participou da equipe de campanha de Michael Bloomberg à prefeitura de Nova York nos anos 2000 e atua como uma espécie de consultor informal da campanha do PSL. “Ele é honesto com as próprias limitações, por isso, a relação com o economista Paulo Guedes, que virou o posto Ipiranga de Bolsonaro, acabou dando certo.”

Não que a ligação entre os dois esteja isenta de críticas, ao contrário, mas é inquestionável que Guedes ancorou a candidatura do capitão em determinados setores econômicos. Ao longo dos últimos seis meses, a partir de entrevistas, sabatinas e debates, Bolsonaro perdeu um pouco a tal “humildade” exaltada por Wierson e passou a ser mais duro nas respostas, talvez pela experiência adquirida com a forte exposição.

 

Lista

Desde o início da atividade parlamentar na Câmara dos Deputados — ele está no sétimo mandato —, Bolsonaro tentou mobilizar os holofotes em defesa da volta da ditadura, da pena de morte para qualquer crime premeditado e exaltando preconceitos contra negros e gays abertamente. Nesse meio tempo, acumulou mais e mais votos à medida que se reelegia. Há quatro anos, com a eleição de Dilma Rousseff, começou a colocar o plano da presidência em ação.

Ao longo deste ano, Bolsonaro, mesmo em segundo, polarizou as pesquisas quando ainda o PT fingia insistir no nome de Lula. Até maio, analistas mais experientes desacreditavam na força dele por causa da alta rejeição. Quando se imaginou que a mobilização de mulheres nas ruas contra o deputado, o #Elenão, poderia freá-lo, os números das pesquisas mostraram o contrário, principalmente por causa da máquina de reação de apoiadores do presidenciável nas redes. Foram os últimos golpes do capitão contra os mitos de campanha.

 

FERNANDO HADDAD

 

Paulo Silva Pinto

 

Ao postulante do PT à Presidência carecem as feições, a experiência e o carisma do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Mas, com certo esforço, não lhe falta a voz. “Companheiro Haddad, vá lá e ganha esta eleição para mim”, disse, em tom rouco, o presidenciável petista há três semanas, em um comício em Florianópolis, imitando o líder. Reproduzia o diálogo que os dois haviam travado poucos dias antes na sede da Polícia Federal, em Curitiba, onde Lula está preso. A sátira no palanque levou ao delírio a plateia de militantes.

Talento para o humor é algo que Fernando Haddad tem de sobra. Faz tempo. Em 1978, ele era especialista em levar às gargalhadas os colegas do rigoroso Colégio Bandeirantes, na Zona Sul de São Paulo. Um dia apareceu uma buzina na sala de aula. “Na chamada, cada vez que o professor mencionava o nome de algum aluno ausente, a buzina soava”, contou o jornalista Silvio Queiroz, seu colega de sala. O mestre identificou Fernando como responsável pelo barulho e mandou que saísse da sala. Ele levantou-se e se virou em direção à porta, mas não sem antes alcançar a buzina com o pé e garantir mais uma buzinada. Veio abaixo a classe de meninos de 15 anos.

Haddad um dia puxou uma inusitada conversa com Queiroz sobre política, coisa rara naqueles tempos. “Esse Maluf é muito esperto, você não acha?”. O diálogo não prosperou, pois o colega politizado viu ali propaganda da comunidade libanesa — o pai de Fernando, Khalil Haddad, emigrou para o Brasil em 1947. Enquanto o PT era fundado, em 1980, o hoje presidenciável usava calças curtas.

 

Acadêmico

Conquistada uma vaga na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), teve de conciliar os estudos com o auxílio ao pai, atrás do balcão da loja de tecidos da família. Mas conseguiu tempo para participar da política estudantil naquele início dos anos 1980, quando se ensaiava a volta do país à democracia. Em 1983, estava filiado ao PT.

Conquistou o registro na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em 1986, mas decidiu seguir outro caminho: foi fazer mestrado em economia, também na USP. Em tom de galhofa, disse recentemente que só passou na prova de seleção colando do economista Alexandre Schwartsman — o qual nega a história.

Durante a pós-graduação, casou-se com a dentista paulistana Ana Estela Haddad, que já tinha antes de conhecê-lo esse sobrenome, o equivalente a Ferreira em português. Ela também é descendente de libaneses, mas ambos não têm parentesco.

Fernando Haddad chegou a se aventurar como empreendedor: associou-se a um cunhado engenheiro em uma empresa de construção. Mas, com o mestrado em economia embaixo do braço, trocou a empresa por um emprego como analista de investimentos no Unibanco. Logo a academia o puxou de volta: foi fazer o doutorado em filosofia na USP. Em 1997, se tornou professor de ciência política da universidade, posição que mantém até hoje. Dá aulas também no Insper, entidade de ensino superior privada que está entre as mais caras de São Paulo.

 

De técnico a gestor

Haddad chegou à administração de Marta Suplicy na prefeitura de São Paulo em 2001 como um técnico na equipe do economista João Sayad, secretário de Finanças. Quando Lula se tornou presidente, dois anos mais tarde, virou assessor no Ministério do Planejamento. Foi alçado de lá ao segundo cargo mais importante na Educação (MEC). E tornou-se ministro quando o titular, Tarso Genro, deixou a pasta.

Haddad foi responsável pelo Prouni, que destinou recursos públicos para bancar bolsas de estudos em faculdades privadas. Graças a isso e à ampliação das universidades federais, o número de vagas no ensino superior passou de 140 mil em 2007 para 218 mil em 2010. Quando Lula foi sucedido por Dilma Rousseff, Haddad ficou no cargo. É da gestão dele na pasta algo que lhe traz dificuldades nestas eleições: a campanha contra homofobia nas escolas.

Em 2012, Haddad foi eleito prefeito de São Paulo. Uma de suas marcas foi a expansão das ciclovias na cidade. Os resultados na gestão das contas públicas são elogiados por analistas de mercado. Desse período, vêm outras vulnerabilidades do hoje candidato a presidente: os processos em que é acusado por improbidade administrativa na construção de ciclovias e pelo uso de caixa 2 na campanha. Ele se declara inocente em relação a todas as acusações. Em 2016, foi candidato à reeleição. Com 16,7% dos votos, perdeu no primeiro turno para o tucano João Doria.

 

Rumo ao centro

Haddad não era a primeira opção de Lula para a posição em que está hoje. O ex-presidente tinha certeza de que conseguiria concorrer. Quando ficou mais claro que não seria assim, em junho, o nome mais cogitado ainda era o do ex-governador da Bahia Jacques Wagner. Só depois de ele declinar é que veio a vez de Haddad. Foi registrado como candidato a vice, tendo Lula na cabeça de chapa, em agosto. A presidente do partido, Gleisi Hoffmann, disse que Haddad estava “em estágio probatório”.

O que se espera, nesta nova etapa da campanha, é um movimento rumo ao centro, algo a que vários petistas resistiram no primeiro turno, sobretudo Gleisi. Antonio Augusto de Queiroz, diretor de documentação do Departamento Intersindical de Análise Parlamentar (Diap), diz que Haddad tomará medidas para impor o que acha melhor, seja na campanha, seja no governo, caso seja eleito. “Ele é uma pessoa de diálogo, mas zeloso de sua autoridade.”

Dos 12 competidores entre os candidatos no primeiro turno, resta-lhe um. Só não se sabe quantos adversários ele ainda tem no próprio PT. (PAULO SILVA PINTO)