Valor econômico, v.19, n.4603, 04/10/2018. Opinião, p. A14

 

As ilusões persistem 

Carlos Luque 

Simão Silber 

Roberto Zagha 

04/10/2018

 

 

Pobreza e desigualdade são problemas graves. Reconhecidos como tais por muitos governos, pelo menos desde Getúlio Vargas e até a década dos 80, o crescimento econômico foi considerado a melhor maneira de combatê-los.

O Brasil pode sonhar durante 1950-1980 quando a renda per capita do brasileiro quadruplicou. Mas o crescimento econômico caiu abruptamente desde então, fazendo com que pobreza e desigualdade persistam a níveis altos. O IBGE indica que 25 milhões de pessoas vivem com uma renda de até um quarto do salário mínimo ("pobreza extrema") e 60 milhões com uma renda de até meio salário mínimo por mês ("pobreza absoluta"), isto é, 30% da população. Nos anos 70 a FIPE concluiu que os 10% mais ricos detinham mais da metade do PIB. O World Inequality Report mostra que desde 2000 os 10% mais ricos detém 55% do PIB - 90% dos brasileiros sobrevivem com menos da metade do PIB.

A sabedoria popular conhece o que os dados provam: o Brasil tem uma das piores distribuições de renda do planeta. A justaposição de pessoas pobres com pessoas que "ganham mais do que precisam" gera um sentimento de injustiça no país.

Com todas suas virtudes, o mercado e o setor privado não podem produzir uma distribuição de renda justa. A experiência dos Estados Unidos ilustra este fenômeno. Com a desregulação do setor privado e contração do papel do Estado nos últimos 30 anos o país viu sua distribuição de renda chegar ao pior nível dos últimos 100 anos. E razoável concluir que uma economia brasileira mais justa sem a presença importante do Estado é impensável.

Lamentavelmente, criou-se a noção de que o setor público é responsável por todos os males que atingem o país. O setor público virou Deus e o Diabo. Diabo porque todos os problemas decorrem de sua existência. Deus porque aguardamos que ele virá com um plano para nos salvar. A situação da distribuição de renda gera uma pressão irresistível sobre os orçamentos públicos para ampliação e melhoria da saúde, educação, segurança, saneamento, mobilidade urbana, etc. Na ausência de crescimento econômico que gere empregos e recursos o desequilíbrio das contas públicas é inevitável. A falta de crescimento dos recursos públicos e privados cria pressões adicionais ao criar demanda por despesas corretivas como segurança, assistência social e saúde. O que acentua ainda mais o desequilíbrio das contas públicas: sintoma, não causa, dos males que afligem a economia.

A partir daí temos um setor público que não consegue resolver os problemas sociais. E começa a ideia equivocada e singela de prescindir do setor público para promover o desenvolvimento, ignorando os problemas estruturais do país que são:

1. Um setor privado com grandes áreas de ineficiência. Um relatório recente da OCDE mostra que no Brasil um litro de leite custa duas vezes o que custa nos EUA, roupas e sapatos custam o dobro. Um carro custa 2,5 vezes mais e minutos no celular, 7 vezes mais. Estes bens e serviços, produzidos pelo setor privado, são alguns entre muitos exemplos de bens e serviços que custam muito mais no Brasil do que em outros países.

2. Desindustrialização precoce. Nos anos 80 o setor industrial gerava um terço do PIB. Esta proporção caiu a 10% em 2017. Com isto perdeu-se uma fonte importante de dinamismo na economia e também empregos que valorizam o trabalhador. Exportações de manufaturas, que representavam mais da metade das exportações nos anos 1990, estão abaixo de 40%.

3. Desglobalização. A economia brasileira é uma das mais fechadas do mundo. Exportações e importações representam menos de um quarto do PIB (40 % na China e muito mais na Coreia ou Índia). As empresas brasileiras não se beneficiam das tecnologias mais modernas, e devem se concentrar no mercado interno que, por maior que seja, representa 2,6% da economia mundial. Economias de escala potenciais não se realizam

4. Falta de infraestrutura. Investimos 0,5% do PIB em infraestrutura enquanto que economias que crescem rapidamente, como a China e outras, investem acima de 6-7% ao ano.

Estas fraquezas estruturais explicam por que o país se distanciou cada vez mais tanto dos países avançados como das economias emergentes. Entre 1980 e 2017 a renda per capita do Brasil aumentou em 44% enquanto que a da China aumentou 17 vezes, a da Coreia, 6, a da Índia, 4, e a dos EUA, 2. Claramente estamos perdendo a luta pela prosperidade econômica.

Esta evolução foi o resultado de políticas econômicas inspiradas por ideias equivocadas: o país pode crescer sem desenvolvimento industrial na base de seu mercado interno e o setor público é a fonte de todos os males.

Apesar de problemas estruturais graves, as análises sobre os desafios da economia brasileira batem numa tecla só: ajuste das contas públicas. A ineficiência do setor privado nacional, desindustrialização, desglobalização, dilapidação da infraestrutura, desigualdade na distribuição de renda, aumento da pobreza, falta de crescimento recebem atenção mínima em relação ao ajuste fiscal que passou a ser visto como solução a tudo.

A determinação em fazer cortes de gastos passou a ser indicação da virilidade de nossos candidatos a presidente. É claro que as contas públicas devem ser sustentáveis e é claro que a dívida pública está numa trajetória explosiva. Mas é errôneo pensar que cortes de gastos são a solução.

A teoria econômica e a experiência de outros países nos ensinam que cortes de gastos numa situação recessiva não melhoram, mas pioram a situação fiscal pela simples razão que reduzem a taxa de crescimento e a receita tributária. A experiência do Brasil nos últimos anos é uma ilustração deste fenômeno.

Uma estratégia de crescimento que permitiria aumentar o emprego, reduzir a pobreza, reduzir os desequilíbrios fiscais, e nos aproximar do nível de renda dos países mais avançados exige introspecção, uma mudança de nossas convicções e uma reforma de nossas políticas econômicas.

Antes de mais nada devemos abandonar a ilusão de que é possível ajustar as contas públicas na ausência de um crescimento robusto e persistente. Devemos abandonar a ilusão de que podemos crescer na base do nosso mercado interno. Finalmente, devemos abandonar a ilusão de que o Estado é a origem de todos os males da sociedade. O Estado tem que ser mais eficiente. Não há dúvida. Mas não é o inimigo. Um país não pode prescindir de um Estado eficiente. O setor privado brasileiro também deve aumentar sua eficiência. As complementaridades são essenciais e devemos abandonar a ilusão que combater o Estado significa resolver nossos problemas econômicos.