O globo, n. 31325, 13/05/2019. Artigos, p. 3

 

Decisões sem embasamento

Cláudio Ferraz

Filipe Campante

Rodrigo R. Soares

13/05/2019

 

 

O presidente não gosta da taxa de desemprego. Já afirmou que a considera alta demais e, posteriormente, disse que o desemprego seria maior que o registrado pelo IBGE. Confrontado com esse problema, ele não se intimidou e contemplou duas alternativas: reduzir de fato o desemprego ou alterar o cálculo da taxa. Como reduzir o desemprego não é tarefa fácil, a escolha revela-se óbvia: que se mude o cálculo.

Essa alternativa, porém, apresentaria um pequeno problema técnico: a taxa de desemprego é definida universalmente como a razão entre o número de pessoas desempregadas ativamente procurando emprego e o total de pessoas economicamente ativas. Portanto, o presidente pode até mudar o cálculo da taxa de desemprego, o único senão é que, ao fazê-lo, ela deixará de ser a taxa de desemprego. Difícil dizer de outra forma, mas essa estatística é, num sentido existencial, a própria taxa de desemprego.

Não há como minimizar o quão absurdo é um presidente da República questionar a definição e o cálculo da taxa de desemprego da agência estatística oficial do país. Esse absurdo ilustra traços que, com poucas exceções, têm-se tornado características marcantes da atuação do governo: ignorância profunda no tratamento de problemas sérios enfrentados pelo país e clara tendência autoritária.

A taxa de desemprego não descreve todas as condições relevantes do mercado de trabalho. Várias outras estatísticas são usadas para gerar um quadro mais completo, incluindo, por exemplo, a taxa de participação, o salário médio e a taxa de informalidade. Mas o presidente parece não conhecer essas outras estatísticas, não entende o seu significado e, pior, não tem interesse em aprender a respeito. Ele simplesmente não gosta da taxa de desemprego. Se consultasse essas estatísticas, concluiria, além de tudo, que não há evidência de que a taxa de desemprego esteja se mantendo elevada por causa de mudanças na taxa de participação no mercado de trabalho.

Decisões refletindo grau semelhante de leviandade têm sido tomadas corriqueiramente nas mais diversas áreas, com consequências diretas sobre o bem-estar da população. A posse de armas é flexibilizada, radares em rodovias federais são eliminados, novos agrotóxicos são aprovados, e decisões de política educacional e externa são tomadas. E a clara impressão é a de que o fator determinante em todos os casos é que o presidente, ou algum funcionário de alto escalão igualmente ignorante sobre o assunto em questão, simplesmente não gosta de dirigir com radares ou algo que o valha.

Mas política pública é coisa séria, com consequências diretas sobre a vida das pessoas. A retirada de radares provavelmente aumentará o número de mortes nas estradas. A flexibilização da posse de armas provavelmente fará o mesmo com o número de assassinatos decorrentes de desentendimentos pessoais. Mudanças na política educacional provavelmente afetarão o aprendizado de toda uma geração de cidadãos. Existe evidência científica séria sobre todas essas dimensões. Infelizmente, isso não parece ter qualquer impacto no processo decisório do atual governo.

Além disso, as consequências de episódios como os recentes não se restringem ao constrangimento causado ao próprio presidente. As experiências de outros países, como Argentina e Venezuela, nos ensinam que a subordinação de decisões técnicas a desígnios políticos é profundamente destrutiva. Uma vez que a credibilidade da coleta de dados pelo governo é corroída, recompô-la é tarefa árdua e custosa, sem garantia de sucesso a curto prazo.

O impulso de questionar dados quando eles são inconvenientes não é peculiaridade brasileira. O próprio presidente Trump criticou a metodologia de cálculo da taxa de desemprego em termos muito semelhantes aos que adotou seu êmulo brasileiro, além de ter tentado alterar o questionário do Censo com fins políticos. Nos EUA, contudo, a resistência institucional foi imediata, com o Judiciário interpondo-se a tais tentativas e a tecnocracia fazendo ouvidos de mercador para a ignorância do presidente. Resta saber se as instituições brasileiras estão à altura.