O Estado de São Paulo, n. 46016, 13/10/2019. Notas e Informações, p. A3

 

A liberdade e a lei

13/10/2019

 

 

Em junho, o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou a suspensão de todos os processos judiciais que discutem se o acordo coletivo pode prevalecer sobre direitos previstos em legislação trabalhista infraconstitucional. Em maio, o STF havia reconhecido a repercussão geral da questão discutida no processo. O Código de Processo Civil é expresso: “Reconhecida a repercussão geral, o relator no STF determinará a suspensão do processamento de todos os processos pendentes, individuais ou coletivos, que versem sobre a questão e tramitem no território nacional”.

Na quinta-feira passada, seguindo a decisão do ministro Gilmar Mendes, o Tribunal Superior do Trabalho (TST) suspendeu todos os processos trabalhistas que discutem a validade das negociações coletivas até que o STF se pronuncie sobre a questão. A suspensão afeta uma grande quantidade de ações da Justiça do Trabalho. Há estimativas de que até 60% dos processos trabalhistas referem-se a essa matéria.

Se o alcance da suspensão recomenda que o STF seja diligente no julgamento do caso, ele também aconselha especial cuidado na apreciação do caso. Nesse processo, a Justiça tem a oportunidade de estabelecer uma jurisprudência mais equilibrada e, principalmente, em conformidade com a reforma trabalhista aprovada em 2017 pelo Congresso, a Lei 13.467/2017.

A rigor, a questão não é se um acordo entre particulares pode prevalecer sobre a lei. Trata-se de um princípio básico do Estado: a disposição entre particulares não pode prevalecer sobre uma lei vigente e constitucionalmente válida. A questão a ser avaliada pelo STF é o status que a própria lei concede à negociação coletiva.

Alterada pela Lei 13.467/2017, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) estabelece que “a convenção coletiva e o acordo coletivo de trabalho têm prevalência sobre a lei quando, entre outros, dispuserem sobre (i) pacto quanto à jornada de trabalho, observados os limites constitucionais; (ii) banco de horas anual; (iii) intervalo intrajornada, respeitado o limite mínimo de trinta minutos para jornadas superiores a seis horas”. Esses são os três primeiros temas. Ao todo, são 15 pontos a respeito dos quais a própria lei define que o acordo coletivo pode dispor de forma diferente ao determinado pela legislação infraconstitucional.

E no artigo seguinte, também de acordo com a redação dada pela reforma trabalhista, a CLT dispõe que “constituem objeto ilícito de convenção coletiva ou de acordo coletivo de trabalho, exclusivamente, a supressão ou a redução dos seguintes direitos: (i) normas de identificação profissional, inclusive as anotações na Carteira de Trabalho e Previdência Social; (ii) seguro-desemprego, em caso de desemprego involuntário; (iii) valor dos depósitos mensais e da indenização rescisória do FGTS”. Esse artigo lista, ao todo, 30 itens a respeito dos quais o acordo coletivo não pode prever algo diferente do que dispõe a lei.

Fica evidente, portanto, que a discussão a respeito da validade do acordo coletivo refere-se à validade da própria lei. No caso, é a validade da própria CLT, já que é ela que reconhece a liberdade de trabalhadores e patrões para dispor, por meio de acordo coletivo, sobre aqueles assuntos. Como reconheceu o STF, nessa discussão estão envolvidas questões constitucionais importantes.

A validade do acordo coletivo relaciona-se, por exemplo, com o princípio constitucional da separação dos Poderes. Foi o Congresso que aprovou a reforma trabalhista, atribuindo efeitos jurídicos precisos às convenções coletivas. A Justiça não pode passar por cima da vontade do Legislativo, especialmente se essa vontade está em consonância com a Constituição. E aqui se vislumbra outro ponto fundamental da reforma trabalhista. Ao assegurar amplos espaços de liberdade, a Lei 13.467/2017 assegura o cumprimento de um dos cinco fundamentos da República Federativa do Brasil: os valores sociais do trabalho e da livre-iniciativa, como dispõe o art. 1.º da Carta Magna. A liberdade e a lei merecem integral proteção.

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Um gigante nanico

13/10/2019

 

 

O PSL, com seus 54 deputados e 4 senadores, é um dos maiores partidos do País. Por seu tamanho, tem também à sua disposição uma das maiores fatias do Fundo Partidário e do Fundo Eleitoral – que devem injetar nos cofres da agremiação no ano que vem algo em torno de R$ 400 milhões. É dinheiro público demais para que não haja transparência e prestação de contas, e, no entanto, é exatamente o que acontece no partido, controlado rigidamente por seu cacique, o deputado Luciano Bivar (PE).

O recente entrevero entre Bivar e o presidente Jair Bolsonaro, estrela mais reluzente do PSL, explicitou o problema. O grupo bolsonarista dentro do partido reivindica maior participação nas decisões sobre a distribuição dos recursos, o que passa também pelo preenchimento de cargos nos diretórios da legenda País afora.

Bivar sempre conduziu o PSL como um negócio particular, seguindo o modelo de empreendimento pessoal que estimulou a criação de dezenas de legendas, a maioria vocacionada para representar os interesses de seus caciques. Nesse modelo, empregam-se parentes, amigos e agregados e vive-se de Fundo Partidário, sem que haja necessidade de prestar contas a ninguém – contando com uma legislação frouxa e uma Justiça Eleitoral lenta.

A obscura contabilidade do PSL mereceria apenas uma nota de rodapé, já que se trata de prática recorrente em grande parte das legendas de mesma natureza, não fosse o fato de que o partido não é mais um nanico que corria o sério risco de desaparecer como consequência da cláusula de barreira. Hoje, a legenda tem status de potência eleitoral de primeira grandeza. Além da segunda maior bancada da Câmara, o partido tem o presidente da República e três governadores do Estado – um salto extraordinário para um partido que elegeu apenas um deputado em 2014.

O PSL não só é o esteio da base governista no Congresso, como tem a pretensão de ampliar bastante sua capilaridade no País elegendo prefeitos em várias capitais e cidades importantes, fortalecendo-se para a disputa presidencial em 2022. Diante dessa perspectiva, é natural que os bolsonaristas queiram ter maior influência dentro do partido, desafiando o domínio de sua atual direção.

Primeiro, os bolsonaristas alegam, não sem razão, que o partido amealha cerca de R$ 8 milhões por mês do Fundo Partidário e não diz o que faz com o dinheiro. Segundo, queixamse de que o deputado Bivar manobrou na surdina para alterar o estatuto da legenda de modo a aumentar ainda mais seu poder na presidência do PSL, onde está desde 1998, com apenas uma breve ausência, entre março e outubro do ano passado.

A maior preocupação dos bolsonaristas, claro, é com as eleições, razão pela qual querem ter maior controle sobre os recursos do PSL e sobre as decisões partidárias. O presidente Jair Bolsonaro julga ter um grande trunfo para pressionar Bivar a se dobrar a seus desejos: se não fosse por ele, o partido hoje provavelmente nem existiria mais. Foi graças ao fenômeno bolsonarista que o PSL se tornou um partido rico.

O novo status do partido, no entanto, não muda sua essência: continua a ser regido pelo oportunismo e por interesses pessoais de seus dirigentes. Bolsonaro foi para o PSL como poderia ter ido para qualquer outra agremiação disponível – algo trivial para quem já passou por PDC, PP, PPR, PPB, PTB, PFL, PP e PSC desde 1989.

Agora, Bolsonaro ameaça deixar o PSL e causar uma debandada de parlamentares bolsonaristas. Como não há janela para trocar de partido neste momento, quem deixar o PSL como gesto de lealdade a Bolsonaro corre o risco de perder o mandato. O próprio Bolsonaro dificilmente conseguiria abrigarse em alguma legenda com o mesmo tamanho do PSL hoje.

Trata-se de mais uma contundente exposição das mazelas do sistema partidário brasileiro, formado em parte por legendas sem qualquer compromisso com o País, sustentadas por generosas verbas públicas. Quando um desses partidos alcança nada menos que a Presidência da República e se torna uma das maiores bancadas do Congresso, essa natureza grita.