O globo, n.31419, 15/08/2019. País, p. 04

 

Punição a juízes e procuradores 

Bruno Góes 

15/08/2019

 

 

Em um momento de desgaste da Operação Lava Jato, a Câmara dos Deputados aprovou ontem um projeto que pune o abuso de autoridade. O texto, que já havia sido apreciado pelo Senado em 2017, define penas para vários tipos de ilícitos. Magistrados, por exemplo, serão punidos com detenção de um a quatro anos ao decidirem pela prisão preventiva sem amparo legal. Abertura de investigação sem indícios de crime e obtenção de prova por meio ilícito também são algumas das práticas enquadradas como crime de abuso. O projeto segue agora para sanção do presidente Jair Bolsonaro.

Com a divulgação de mensagens atribuídas a procuradores da Lava-Jato e ao ex uiz Sergio Moro, hoje ministro da Justiça, parlamentares entenderam que a ocasião seria uma boa oportunidade para impor limites ao que consideram “excessos”. Apenas as bancadas de Novo e Cidadania quiseram adiar a votação.

A Câmara decidiu aprovar um projeto mais amplo em detrimento da proposta aprovada no primeiro semestre no Senado, que teve origem no texto enviado pelo Ministério Público das “Dez Medidas Contra a Corrupção”. A iniciativa escolhida leva em consideração abusos cometidos por integrantes do Judiciário, Legislativo e Executivo, enquanto a do Senado focava apenas no Judiciário e no Ministério Público.

Entre as práticas que passarão a ser consideradas abuso de autoridade estão, entre outras, “divulgar gravação sem relação com as provas que se pretende produzir em investigação”, “estender a investigação de forma injustificada”, “decretar a condução coercitiva de testemunha ou investigado de forma manifestamente descabida”, “submeter preso ao uso de algemas quando estiver claro que não há resistência à prisão” e antecipar atribuição de culpa “por meio de comunicação, inclusive rede social”, antes de concluídas as apurações e formalizada a acusação. A proposta também torna crime a realização de interceptação telefônica ou de dados sem autorização judicial, com pena de dois a quatro anos de prisão.

Durante a semana, líderes do centrão articularam para incluir a limitação do poder de investigação de fiscais da Receita Federal no projeto de abuso. A inclusão seria feita por meio de emenda, em plenário. Ontem, porém, o tema não foi adiante porque uma alteração obrigaria o projeto a retornar para o Senado.

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Um dos pontos de preocupação de associações de juízes e procuradores trata da interpretação do juiz sobre a lei. O texto, porém, pode preservar o magistrado ao ressaltar que a divergência na interpretação legal e avaliação de fatos e provas “não configura, por si só, abuso de autoridade”.

A Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) criticou o projeto e afirmou que “a necessária punição a quem atue com abuso de autoridade não pode servir, sob qualquer pretexto, a intimidar ou de qualquer forma subtrair a independência do Poder Judiciário e seus juízes, que tanto realizam no combate à corrupção, na garantia dos direitos fundamentai sena consolidação da democracia ”.

Já o presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil, Fernando Mendes, avalia que o texto gera interpretações subjetivas que podem cercear juízes.

—Oque não pode é o juiz ser punido penalmente por decidir de uma maneira que amanhã ou depois venha a ser modificada — disse Mendes ao Jornal Nacional, da TV Globo.

A Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp) afirma que “determinados pontos polêmicos representam riscos à atuação austera do MP”, “a exemplo de previsão de crimes que tratam de condutas que são meras irregularidades administrativas; figuras criminosas imprecisas e permeadas de subjetividade, além de penas desproporcionais”. A associação criticou também a agilidade imposta para priorizar o projeto: “implica em uma inversão de pauta que contraria os anseios da sociedade”.

Também ontem, em outro movimento de reação, o Senado aprovou requerimento solicitando ao Tribunal de Contas da União (TCU) cópia dos procedimentos abertos pelo órgão para apurar indícios de irregularidades praticadas pela Receita e pelo Conselho de Controle das Atividades Financeiras (Coaf) na investigação de autoridades. Na justificativa, o autor do pedido, senador Alvaro Dias (PodemosPR), afirma que “o TCU é órgão auxiliar do Congresso e deve-se apurar eventual tentativa de extrapolação do seu papel institucional”. (Colaboraram Natália Portinari e Amanda Almeida)

EXEMPLOS DO QUE PODE VIRAR CRIME DE ABUSO DE AUTORIDADE

Prova por meio ilícito

Obter prova em procedimento de investigação por meio ilícito (até quatro anos de detenção).

Condução ‘descabida’

Decretar condução coercitiva de testemunha ou investigado de forma descabida sem prévia intimação (até quatro anos de detenção).

Prisão e apreensão

Captura, prisão ou busca e apreensão sem situação de flagrante delito ou sem ordem judicial (até quatro anos de detenção).

Expor intimidade

Divulgar gravação sem relação com as provas, expondo a intimidade (até quatro anos de detenção).

Atribuição de culpa

Antecipar a atribuição de culpa, inclusive em rede social e antes de concluídas as apurações (pena de seis meses a 2 anos de detenção).

Algemas sem necessidade

Submeter preso ao uso de algemas, quando estiver claro que não há resistência à prisão (até dois anos de detenção).