O Estado de São Paulo, n. 46113, 18/01/2020. Política, p. A4

 

Vídeo de inspiração nazista derruba chefe da Cultura

Tânia Monteiro

Mateus Vargas

Felipe Frazão

Vera Rosa

18/01/2020

 

 

Executivo. Sob forte pressão de líderes do Legislativo e do Judiciário e da comunidade judaica, Bolsonaro demite secretário que gravou mensagem com alusão ao discurso de Goebbels

Sob pressão de chefes dos Poderes, da comunidade judaica e de seus eleitores, o presidente Jair Bolsonaro demitiu ontem o secretário especial da Cultura, Roberto Alvim, depois que ele apareceu em um vídeo, nas redes sociais, citando trecho de um discurso de Joseph Goebbels, ministro da Propaganda da Alemanha nazista. Bolsonaro não queria dispensar Alvim, mas a situação dele ficou “insustentável” diante da mais forte reação a um pronunciamento ideológico desde o início do governo. O repúdio ao regime nazista de Adolf Hitler uniu Legislativo, Judiciário, federações israelitas, evangélicos e até embaixadas, ultrapassando a polarização entre direita e esquerda.

Na tentativa de sair rapidamente da crise, o presidente convidou a atriz Regina Duarte para assumir a Secretaria da Cultura. Ela prometeu dar a resposta até segunda-feira. A atriz apoiou Bolsonaro na campanha e, no ano passado, já havia sido chamada para o cargo, mas recusou. Agora, disse que está “pensando” sobre o assunto. “Estou com este convite e me assusta muito. (...) Tem um ministério complicado aí”, afirmou. O governo quer um nome de peso para substituir Alvim (mais informações na pág. A14).

Logo cedo, os presidentes da Câmara, Rodrigo Maia (DEMRJ), do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), e do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, cobraram publicamente a demissão de Alvim, que assumiu o cargo em novembro. Bolsonaro também recebeu vários telefonemas de aliados pedindo a saída do secretário, sob o argumento de que o governo não poderia admitir elogios ao nazismo, responsável pela perseguição e assassinato de milhões de judeus. O Estado

apurou que duas ligações foram fundamentais para a decisão do presidente: a de Alcolumbre, que é judeu, e a do embaixador de Israel no Brasil, Yossi Shelley.

Para Alcolumbre, o discurso de Alvim foi “acintoso, descabido e infeliz” em todos os aspectos. “Como primeiro presidente judeu do Congresso Nacional, manifesto veementemente meu total repúdio a essa atitude e peço seu afastamento imediato do cargo”, escreveu ele, em nota. Maia, por sua vez, disse no Twitter que o secretário da Cultura havia passado “de todos os limites” e Toffoli considerou a citação ao nazismo como “uma ofensa ao povo brasileiro e à comunidade judaica”. Horas depois, a exoneração de Alvim foi publicada em edição extra do Diário Oficial da União.

“Comunico o desligamento de Roberto Alvim da Secretaria de Cultura do governo. Um pronunciamento infeliz, ainda que tenha se desculpado, tornou insustentável a sua permanência”, postou o presidente no Facebook, no início da tarde. “Reitero nosso repúdio às ideologias totalitárias e genocidas, bem como qualquer tipo de ilação às mesmas. Manifestamos também nosso total e irrestrito apoio à comunidade judaica, da qual somos amigos e compartilhamos valores.”

No vídeo em que anunciou o Prêmio Nacional das Artes, na noite de anteontem, Alvim copiou em boa parte trecho de um pronunciamento de Goebbels, tendo como fundo musical a ópera Lohengrin, de Richard Wagner, obra que Hitler adorava. “A arte brasileira da próxima década será heroica e será nacional. Será dotada de grande capacidade de envolvimento emocional e será igualmente imperativa, posto que profundamente vinculada às aspirações urgentes de nosso povo, ou então não será nada”, disse o então secretário, que havia sido elogiado naquele dia por Bolsonaro.

Igual. O discurso de Goebbels tem praticamente as mesmas frases. “A arte alemã da próxima década será heroica, será ferreamente romântica, será objetiva e livre de sentimentalismo, será nacional com grande páthos e igualmente imperativa e vinculante, ou então não será nada”, afirmou Goebbels em 8 de maio de 1933 em um pronunciamento para diretores de teatro, segundo o livro Joseph Goebbels: uma Biografia, de Peter Longerich.

Ao Estado, antes da demissão, Alvim disse que se tratava de uma “coincidência retórica”, afirmou repudiar o regime de Hitler, mas concordou com o conteúdo da citação. “A origem é espúria, mas as ideias contidas na frase são absolutamente perfeitas e eu assino embaixo”, declarou o dramaturgo. Àquela altura, Alvim acreditava que continuaria na cadeira porque Bolsonaro havia conversado com ele e garantido sua permanência na equipe.

As explicações de Alvim na entrevista pioraram ainda mais a sua situação. Dois dias depois da polêmica envolvendo o secretário da Comunicação, Fábio Wajngarten, que virou alvo da Comissão de Ética da Presidência, sob acusação de conflito de interesses, Bolsonaro foi pressionado a agir com rapidez para que não houvesse novo fio desencapado no governo, causando ainda mais desgaste em sua já fragilizada base de apoio.

O presidente não esperava, porém, esse volume de reações negativas. Nem mesmo uma afirmação do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), há quase três meses, em defesa de um novo AI-5 para conter possíveis manifestações radicais nas ruas provocou tanta indignação.

O ministro da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos, telefonou para a cúpula do Congresso avisando que o presidente demitiria Alvim. O dramaturgo chegou a pedir “perdão” à comunidade judaica pelo que classificou como “erro involuntário”, mas não adiantou. “Quem recita Goebbels e o nazismo não pode servir a governo nenhum no Brasil”, afirmou em nota a Federação Israelita de São Paulo.