Correio braziliense, n.20561, 08/09/2019. Mundo, p.12

 

Intolerância letal

Rodrigo Craveiro

08/09/2019

 

 

África do Sul » Onda de violência contra comerciantes estrangeiros deixa pelo menos 10 mortos em Joanesburgo. Especialistas apontam fatores econômicos como justificativa para crimes, como o alto índice de desemprego e a competição pelos postos de trabalho

O homem que tentou combater o ódio racial, se tornou vítima dele e passou 27 anos na prisão ansiava ver a união entre todos os africanos. “Estar livre não é meramente se desvencilhar das correntes, mas viver de um modo que respeite e melhore a liberdade dos outros. (...) Sonho com uma África que esteja em paz consigo mesma”, disse Nelson Mandela. Se estivesse vivo, Madiba provavelmente estaria decepcionado e angustiado ao testemunhar como o ódio entre povos irmãos ameaça a paz de seu país e de todo o continente. Nos últimos dias, a África do Sul assistiu a ataques violentos contra estrangeiros provenientes de outras nações africanas, especialmente da Nigéria, do Zimbábue, de Moçambique, do Malauí e da Somália. O modus operandi é sempre o mesmo: pequenos estabelecimentos comerciais são saqueados e queimados. Os proprietários estrangeiros que insistem em resistir são espancados e mortos. Até ontem, 10 corpos carbonizados tinham sido encontrados em meio aos escombros de lojas.

O presidente sul-africano, Cyril Ramaphosa, se pronunciou sobre a onda de xenofobia, na última quinta-feira. “Sabemos que pelo menos 10 pessoas morreram nesses atos violentos, uma delas estrangeira. Famílias inteiras ficaram traumatizadas. Vidas foram destruídas”, declarou, em rede nacional de rádio e TV. “Não há desculpas para a xenofobia (...). Nada justifica os saques nem as destruições.” Everisto Benyera, professor de política africana da Universidade da África do Sul, disse ao Correio que os ataques são muito mais uma violência intrarracial (negros contra negros) do que atos xenofóbicos. “A maioria das vítimas é de africanos negros. A xenofobia pressupõe medo de estrangeiros. Você não ataca e mata algo que teme, mas foge e se preserva”, explicou. “A justificativa para tais crimes é que a economia sul-africana está em espiral descendente, e a ameaça tripla do desemprego, da pobreza e da desigualdade não foi resolvida.”

De acordo com Benyera, a burocracia do Estado é cúmplice por sua inação. “O desemprego juvenil tem sido apontado como o barril de pólvora sobre o qual o Estado estava sentado”, comentou. Ele crê que, no centro do fenômeno, estão a política de identidade e a identidade na política. “O evento que deflagrou a onda de violência foi o assassinato de um taxista por um suposto traficante. A informação inicial era a de que ‘um barão da droga nigeriano matou um taxista sul-africano’. Isso chegou às comunidades como se ‘um nigeriano tivesse executado um sul-africano’. Quando a criminalidade é atribuída à nacionalidade, surgem estereótipos.”

Motivos

Cientista político da Universidade da África do Sul, Dirk Kotzé afirmou à reportagem que existe a percepção de que muitos estrangeiros estão envolvidos com o tráfico de drogas e com a prostituição. Os ataques teriam sido uma tentativa de deter esses crimes. “Os estrangeiros são acusados de corromperem a polícia, ao inseri-las no esquema do tráfico ou ao pagar-lhes suborno. Além disso, são frequentemente muito bem-sucedidos em seus negócios informais, vendendo frutas, hortaliças e outros produtos na rua ou em pequenos comércios. Eles competem com sul-africanos, o que desperta tensões”, explicou.

Parte da comunidade culpa os estrangeiros por tomarem os postos de trabalho com salários baixos. Kotzé entende que o crescente senso de nacionalismo negro na África do Sul encoraja a xenofobia. “Na forma de resistência contra a imigração, de proteção do modo de vida e da cultura, a xenofobia é abastecida por um senso de ameaça externa ao que é sul-africano e ao uso dos serviços públicos (saúde, educação e moradia) — que pressiona a capacidade fiscal e a infraestrutura do país”, observou.

Susan Booysen, diretora de pesquisa do Instituto Mapungubwe de Reflexão Estratégica (Mistra), em Joanesburgo, admitiu que os ataques são causados pelo desespero econômico e pela competição acirrada por recursos. “A raiva é direcionada aos cidadãos estrangeiros, como os donos das chamadas spaza shops (lojas de conveniência informais). Ela se beneficia de uma cultura disseminada de ilegalidade. Na disputa pelos recursos escassos, cidadãos locais alvejam estrangeiros que pareçam prósperos e que possuam casas, carros e negócios.” Os especialistas sublinham que os ataques de 2008, 2015 e deste ano se beneficiam da falta de liderança do presidente.

Pontos de vista

Por Susan Booysen

“Os surtos se repetem”

“Existe, sem sombra de dúvidas, uma cultura da xenofobia em grande parte da África do Sul. O primeiro grande surto ocorreu em 2008. Desde então, os episódios têm se repetido. O saque de estabelecimentos comerciais de estrangeiros se tornou um componente padrão dos protestos em comunidades do país. No entanto, ambulantes também são alvos frequentes. Sempre que há grandes manifestações, as lojas de sul-africanos pelo caminho baixam suas portas. Também existe a percepção de que os estrangeiros estão frequentemente envolvidos no comércio de drogas.”

Diretora de pesquisa do Instituto Mapungubwe de Reflexão Estratégica (Mistra), em Joanesburgo

Por Dirk Kotzé

Métodos similares

“Os ataques xenofóbicos dos últimos dias são, essencialmente, repetições daqueles que começaram em 2008. O método é, quase sempre, o mesmo: a turba invade as lojas de estrangeiros, persegue os comerciantes e saqueia seus produtos. Na semana passada, isso envolveu o bloqueio de algumas vias com grandes caminhões, a fim de atrapalhar o trânsito. A mensagem é a de que uso de estrangeiros como caminhoneiros deve ser interrompido. Tal abordagem já foi usada antes. As pessoas de cor branca não são alvos, mas somente os cidadãos de outros países da África.”

Professor de ciência política da Universidade da África do Sul

Depoimento

“Presenciei um ataque”

“Sou refugiado da República Democrática do Congo e vivo em Joanesburgo desde 2003. O meu país enfrentou vários desafios, inclusive a guerra, o que me levou a fugir de lá. Eu também fui testemunha de ataques xenofóbicos. Na última segunda-feira, eu estava a caminho do trabalho. Eu tinha desembarcado de um trem no centro de Joanesburgo e me preparava para pegar uma segunda locomotiva até o local do meu trabalho, os escritórios da South African Broadcasting Corporation. Vi um grupo de jovens que estava caçando estrangeiros. Testemunhei gente sendo amarrada, espancada, expulsa dos próprios estabelecimentos comerciais, enquanto eram saqueados. Isso me fez ciente do tipo de problema que os estrangeiros enfrentam. A xenofobia remonta a 2008 e se deve a uma série de fatores econômicos enfrentados pelo país. Os ataques ocorridos naquele ano foram o resultado do alto índice de desemprego, que subiu de 17% para 28% em nove anos. Esta é a causa do problema. Desde 2008, os políticos sul-africanos veem os estrangeiros como bodes expiatórios ante a deterioração econômica.”

Nixon Tasakana, 35 anos, congolês que vive em Joanesburgo, África do Sul