Correio braziliense, n. 20763 , 28/03/2020. Política, p. 2

 

Campanha contra isolamento é alvo de denúncias

Jorge Vasconcellos

28/03/2020

 

 

Parlamentares recorrem ao STF e ao TCU por causa de peça publicitária do governo que incentiva o fim do distanciamento social. Frente de prefeitos ameaça também ir à Justiça. Secretaria de Comunicação diz que material foi produzido em caráter experimental

Em mais uma controvérsia criada pelo presidente Jair Bolsonaro, a campanha “O Brasil não pode parar”, do governo federal, já é alvo de questionamentos no Supremo Tribunal Federal (STF) e no Tribunal de Contas da União (TCU), por contrariar as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) ante o avanço do novo coronavírus. Com argumento de preservar a economia, a campanha prega a flexibilização do isolamento social imposto por governadores e prefeitos.

No valor de R$ 5 milhões, a campanha, realizada sem licitação, em razão do estado de calamidade pública do país, vai na contramão do entendimento de especialistas e de governantes de todo o mundo, que defendem o distanciamento social como a melhor maneira de frear a pandemia.

O senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) e os deputados Felipe Rigoni (PSB-ES) e Tabata Amaral (PDT-SP) deram entrada em uma ação no STF pedindo a suspensão imediata da campanha. Em nota, Molon afirmou que o lançamento de uma campanha publicitária, “que não seja baseada no melhor entendimento dos especialistas do Ministério da Saúde e da Organização Mundial da Saúde, é contraproducente, prejudica a saúde do cidadão brasileiro e chega às raias de ser criminoso”.

Já o PSB protocolou uma denúncia com pedido de medida cautelar no TCU contra a campanha. “A inconsequente postura da Presidência da República, além de configurar grave atentado à saúde pública no Brasil, viola as exigências constitucionais e infraconstitucionais para a publicidade do governo federal, situação que revela risco patente de lesão ao Erário”, diz um trecho da denúncia.

Vários parlamentares foram ao Twitter criticar a intenção do governo. O senador Rogério Carvalho (PT-SE), por exemplo, considerou um desperdício de dinheiro público uma campanha que, na visão dele, estimula a população a se expor ao risco de contaminação pelo coronavírus.

Carvalho, que é médico, lembrou que o isolamento social é uma orientação da OMS e pode proteger os brasileiros. O parlamentar também destacou que o próprio ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, alertou que, em abril, o sistema de saúde do Brasil poderá entrar em colapso, por conta da crescente demanda por atendimento. “Por que o governo não usa esse dinheiro para comprar ventiladores mecânicos para UTIs?”, questionou.

Em carta, a Frente Nacional de Prefeitos (FNP) questionou Bolsonaro se o governo vai orientar estados e municípios a suspenderem imediatamente as restrições de convívio social e se a União assumirá as responsabilidades que cabem aos governos locais, como atendimento direto à população. Os chefes municipais ameaçam ir à Justiça para responsabilizar o presidente por consequências da mudança no isolamento social durante a pandemia.

“Irracional”

Para o economista Gil Castello Branco, da ONG Contas Abertas, a campanha do governo, além de ser uma afronta às orientações da OMS e do próprio Ministério da Saúde, serve tão somente para confundir a população, “que vai pagar a conta dessa mensagem irracional”. “É lamentável que, no momento em que todos procuram canalizar recursos para as necessidades imediatas, como máscaras, respiradores, leitos e hospitais, a Presidência da República ou um grupo de irresponsáveis gaste mslhões em uma campanha para desinformar”, criticou. “A Justiça deveria suspender, imediatamente, a divulgação dessa publicidade, em nome do interesse público.”

Já o advogado Thiago Sorrentino, professor de direito do Estado do Ibmec Brasília, afirmou que a União pode ser responsabilizada se o número de contaminações e mortes pelo coronavírus aumentar. “Ainda que não se comprove um nexo direto entre a falta de isolamento e o agravamento do quadro, a União pode ser responsabilizada por falhar em combater, com a melhor técnica disponível, a disseminação da doença. É importante ressaltar que o isolamento e a quarentena não são uma decisão puramente discricionária, política, ditada apenas pela preferência dos agentes públicos”, ressaltou.

Secom

Em nota, a Secretaria Especial de Comunicação da Presidência da República (Secom) classificou como “irresponsável” a divulgação, pela imprensa, do custo e dos objetivos da campanha. Segundo o órgão, o noticiário “não encontra respaldo nos fatos”, e as informações não foram checadas pelos jornalistas. O comunicado acrescenta que o vídeo que circula desde a quinta-feira nas redes sociais foi “produzido em caráter experimental, portanto, a custo zero e sem avaliação e aprovação da Secom”.

A nota informa, ainda, que a gravação “seria uma proposta inicial para possível uso nas redes sociais, que teria de passar pelo crivo do governo”. Segundo a Secom, a peça “não chegou a ser aprovada e tampouco veiculada em qualquer canal oficial do governo federal”. O órgão também assegura que “não houve qualquer gasto ou custo nesse sentido”.

Consequências

Na carta, assinada pelo presidente da FNP, Jonas Donizette, a entidade diz que “a depender da resposta do governo federal ao presente ofício, pois o posicionamento até o momento tem sido dúbio e gerado insegurança na população, não restará outra alternativa aos prefeitos se não recorrer à Justiça brasileira com pedido de transferência ao presidente da República das responsabilidades cíveis e criminais pelas ações locais de saúde e suas consequências”.

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Carreatas no país contra quarentena

Simone Kafruni

Sarah Teófilo

28/03/2020

 

 

Com a chancela do presidente Jair Bolsonaro, que, em pronunciamento em rede nacional, defendeu isolamento apenas do grupo de risco — com temor de impacto da pandemia de coronavírus na economia —, defensores do governo fizeram manifestações ontem por todo o país. Em carreata com buzinaços, protestaram contra o distanciamento social recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS), pelo próprio Ministério da Saúde e por autoridades sanitárias do mundo inteiro. Eles argumentam que o Brasil não pode parar.

Nem o exemplo da Itália — que menosprezou a letalidade da Covid-19, demorou para tomar as medidas de contenção e hoje contabiliza perto de mil mortes por dia — arrefeceu os ânimos daqueles que priorizam o lucro à vida. Em Milão, houve o movimento #MilãoNãoPara, e a cidade soma mais de quatro mil mortes. Nas redes sociais, multiplicam-se chamados para intensificar as manifestações neste fim de semana. Em Brasília, veículos com bandeiras verde e amarela, em carreata, fizeram buzinaço contra a decisão do governador Ibaneis Rocha (MDB), que tinha voltado atrás sobre manter abertas lotéricas e lojas de conveniências. Horas depois, porém, o chefe do Buriti decidiu pela abertura.

Outros chefes de Executivos estaduais e prefeitos endossaram a proposta de Bolsonaro e já editaram decretos para retomada das atividades econômicas. Em Santa Catarina, motoristas foram às ruas para comemorar o anúncio feito pelo governador Carlos Moisés (PSL) de reativar toda a economia. No entanto, ontem mesmo o grupo que atende as recomendações da OMS lançou a hashtag #SCnãoquermorrer.

O governador de Mato Grosso, Mauro Mendes (DEM), editou um decreto que determina retomada do transporte coletivo e do comércio, inclusive restaurantes, em rodovias, bancos, lotéricas e igrejas. Na capital, no entanto, o prefeito Emanuel Pinheiro (MDB) decidiu que os cuiabanos serão mantidos em isolamento social. Em Rondônia, o governador Marcos Rocha (PSL) liberou o funcionamento parcial do comércio. Em Roraima, o comércio foi aberto ainda ontem.

Várias cidades registraram carreatas pela reabertura do comércio, como Curitiba, Maringá (PR), Ipatinga (MG), Capão da Canoa (RS), Balneário Camboriú (SC), Cachoeiro de Itapemirim (ES).

Para o infectologista José David Urbaez, diretor científico da Sociedade de Infectologia do Distrito Federal, as medidas de distanciamento social são fundamentais. “Vai ser um desastre se a curva de contaminação aumentar. Essas pressões não são condizentes com o conhecimento epidemiológico da pandemia”, disse. Médico do Instituto de Infectologia Emílio Ribas, Jamal Suleiman afirmou que pregar o fim do isolamento no momento é “suicídio coletivo”. Ele destacou que economia e saúde não são contrastantes. “A recomendação no mundo inteiro é para que as pessoas não saiam de casa. A gente precisa alcançar o objetivo, que é reduzir o impacto na saúde, proteger as pessoas.”

Milão arrepende-se

A propaganda foi feita em fevereiro pela prefeitura de Milão, na Itália. O prefeito da cidade, Giuseppe Sala, reconheceu que errou ao ter divulgado o slogan “Milão não para”. A cidade é uma das mais afetadas pela pandemia no país europeu, que ontem ultrapassou a marca dos cinco mil mortos pela doença.