O globo, n.31641, 24/03/2020. Artigos, p. 3

 

Covid-19 e trabalho digital

Rubens Penha Cysne

24/03/2020

 

 

Mudanças tecnológicas, em particular, dos processos de estudo ou trabalho, sempre se fazem acompanhar de custos de transição. Aquele que está habituado desde jovem a frequentar salas de aula e ambientes de trabalho fisicamente compartilhados tem certa resistência a passar ao estudo on-line e ao trabalho remoto. No mínimo, tem que aprendera operar com novos programas.

Em certo sentido, esse custo está sendo no momento incorrido em larga escala, de forma algo compulsória e acelerada, em função da pandemia de Covid-19. Isso está ocorrendo nas atividades letivas e profissionais. Com avantagem, para aqueles que agora precisam aprender rapidamente a estudar on-line ou a trabalhar remotamente, de compartilharem um processo que tem se dado de forma coletiva e com forte apoio logístico e financeiro tanto das unidades de ensino quanto das empresas.

Essa maior utilização de meios digitais nas cadeias usuais de trabalho tende a acelerar dois processos que já estavam em curso, um relativo à educação e outro ao trabalho. Ambos privilegiam a eficiência produtiva e a divisão de trabalho (ainda que não necessariamente a equidade, em função da exclusão digital).

Primeiro, tendem a acelerar a globalização da educação, principalmente em matérias, como Ciências e Matemática, que não dependem de peculiaridades locais. Com a universalização das aulas on-line e da tradução simultânea, um único professor, de grande prestígio e didática, poderá alcançar número imenso de alunos no mundo. Perderão professores e entidades de ensino que não primem pela pesquisa e eficiência.

Segundo, no futuro tende a ocorrer cada vez mais, com o fator trabalho, o mesmo que já ocorre na fabricação de vários produtos finais: agregam-se peças produzidas em diferentes países, aproveitando-se as vantagens na produção de cada peça ou insumo nas diferentes regiões do globo. São as chamadas cadeias globais de valor. Esse tipo de processo tende a se acelerar com a maior utilização de meios digitais de trabalho provocada pela pandemia.

Uma vez concebido um produto ou projeto, profissionais morando em diferentes locais ou países serão contratados para a atividade em questão, sem nunca terem necessariamente compartilhado o mesmo espaço físico. Serão inúmeros esses “ubers profissionais”, classificando e unindo trabalhadores especializados em diferentes áreas sob a égide de uma ideia produtiva.

Na verdade, trata-se, essa divisão global da cooperação no trabalho, de um caso particular de um processo muito mais amplo, e que também utiliza intensivamente a tecnologia digital: o processo por meio do qual não apenas bens móveis e imóveis tendem a ter seus serviços vendidos de forma fracionária e impessoal (veja, por exemplo, o Airbnb, que permite aluguéis curtos, rápidos e impessoais), mas também o trabalho qualificado.

Essa divisão distanciada de trabalho possibilitada pelas novas tecnologias informacionais já tem sido frequente na chamada “indústria criativa”. Por exemplo, no setor de produção musical, é comum que instrumentistas e intérpretes sejam contratados para a composição de determinado fonograma sem que jamais tenham estado fisicamente juntos. Basta enviar a partitura para cada um e depois agrupar as gravações das respectivas faixas sonoras num dos vários softwares de edição musical.

Tecnologia, saúde, preservação ambiental e atividades criativas tendem a se tornar os grandes pontos focais do futuro da produção. A última fronteira da ação humana a ser substituída por robôs provavelmente se dará no campo da indução e da criação, incluindo a artística, a científica, e a de estratégias que envolvem prognósticos sobre a complexa reação do ser humano aos mais variados tipos de estímulos.

As relações de trabalho tenderão também a ser ditadas cada vez mais não pela posse do capital físico, como ocorreu do século XVIII ao início do século XXI, mas sim pela posse do capital informacional. Empresas que acumulam e processam continuamente dados sobre hábitos, comportamentos e preferências individuais conseguirão pagar os salários mais elevados e atrair os maiores talentos.Isso porque o seu conhecimento sobre as demandas de cada um por bens e serviços lhes possibilitará grande produtividade na obtenção de receitas e lucros.