Valor econômico, v.20, n.4966, 24/03/2020. Brasil, p. A7

 

Tófolli alertou área econômica sobre brechas legais na MP

Isadora Peron

Beatriz Olivon 

24/03/2020

 

 

O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, procurou integrantes da equipe econômica para avisar que havia trechos da Medida Provisória (MP) 927, editada anteontem pelo governo federal, que poderiam ser considerados inconstitucionais e derrubados pela Corte. A avaliação foi compartilhada por ministros do Tribunal Superior do Trabalho (TST) ouvidos pelo Valor.

Um dos pontos mais polêmicos, a possibilidade de suspender salários por até quatro meses para os trabalhadores que estão parados por causa da pandemia do coronavírus, foi revogado pelo próprio presidente Jair Bolsonaro em menos de 24 horas.

Interlocutores de Toffoli não souberam afirmar quais pontos foram destacados pelo presidente do STF na conversa com o governo, mas a principal crítica à MP foi o fato de que o texto não previa nenhuma compensação aos empregados.

Ontem, o PDT acionou o Supremo para suspender a medida. Outros partidos anunciaram que fariam o mesmo.

Procurado antes de Bolsonaro anunciar que iria retirar o trecho que previa a suspensão temporária dos contratos de trabalho, o ministro do STF Marco Aurélio Mello defendeu a medida. "Achei a MP super razoável, com as cautelas próprias. Não há prejuízo para o empregador, não há prejuízo para o empregado", disse.

O ministro defendeu que a MP era necessária diante da crise que estamos vivendo. "Para uma situação crítica, você tem que ter medidas que mitiguem essa situação. Eu vejo algo realmente voltado a atender a crise. A quem interessa perder a fonte do sustento? A quem interessa uma quebradeira geral? A ninguém."

O ministro defendeu que é preciso "ter um pouco mais de boa vontade e acreditar no poder público" e "não partir para a crítica pela crítica". "A crise é séria, envolve a vida de milhares de pessoas", afirmou.

No TST, a possibilidade de suspender salários não foi bem recebida. O Valor ouviu sete ministros e apenas um defendeu a MP. Ao todo, a corte trabalhista tem 27 magistrados.

O vice-presidente do TST, ministro Luiz Philippe Vieira de Mello Filho, afirmou que a medida era "contrária aos interesses da nação". Para o ministro, no momento são necessárias medidas que mantenham o fluxo da economia. "Sem trabalho, sem renda, sem comida, isso não pode dar certo", disse.

Ele aponta que a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) prevê, no artigo 476 A, que o contrato de trabalho poderá ser suspenso, por um período de dois a cinco meses, para participação do empregado em curso ou programa de qualificação profissional, com duração equivalente à suspensão contratual. Mas isso precisa ser feito mediante previsão em convenção ou acordo coletivo de trabalho e aceito pelo empregado.

Vieira de Mello considera ainda "muito grave" o fato de que, a primeira versão da MP do governo, não considerou a participação de entidades sindicais nas negociações. "A Constituição é clara no sentido de que acordos precisam de participação sindical", disse.

A medida também não seria benéfica para as empresas, que não teriam demanda se parte da população ficar sem salário. "O Estado precisa manter empresas, assegurar manutenção da renda e que famílias estejam protegidas. Não podemos levar as pessoas à convulsão social por desespero", afirmou.

De acordo com a ministra Kátia Magalhães Arruda, a Constituição só permite redução salarial mediante negociação ou acordo coletivo e o princípio da dignidade da pessoa humana também impediria a medida. "Como viverão esses trabalhadores durante o período de suspensão dos salários?", questionou.

Além de inconstitucional, o artigo 18 da MP era também "inconvencional", na avaliação da ministra Delaíde Miranda Arantes. Ela aponta que o trabalhador também é protegido por normas internacionais e não há convenção que permita a suspensão do contrato de trabalho.

Para a ministra, o governo deveria editar uma medida provisória para fortalecer a negociação, em vez de fragilizá-la. "Estamos falando de um momento emergencial, singular, o sacrifício não pode ficar só para os trabalhadores", afirmou.

Para o ministro Augusto César Leite de Carvalho, impressiona a mudança para desonerar Estado e empresas de sacrifícios por causa da pandemia. "Apenas trabalhadores estariam na contingência de concordar em passar quatro meses sem salário em troca de resgatar o emprego ou, quiçá, as verbas rescisórias quatro meses depois."

Outros dois ministros questionaram a constitucionalidade da medida. Para um deles, a MP atribuía apenas ao trabalhador o ônus da crise, no caminho contrário ao de outros países, que tentam minimizar o dano social trazido pela pandemia. Para outro, o desequilíbrio na relação entre capital e trabalho não é recomendável e cabe ao governo criar condições para o diálogo.

Apenas um dos ministros ouvidos afirmou que como a suspensão é por acordo e em tempo de crise, para não romper o contrato, não há problema. Mas ponderou que o governo poderia autorizar por MP o uso do seguro-desemprego. Mesmo assim, considera a antecipação de férias e feriados a melhor alternativa.

__________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Banco do Brics oferece de US$ 1 bilhão

Assis Moreira 

24/03/2020

 

 

O Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), o chamado banco do Brics, sinaliza que está pronto a emprestar ao Brasil a soma de US$ 1 bilhão (aproximadamente R$ 5 bilhões) para ajudar o país no combate à pandemia do novo coronavírus.

O banco criou um Programa de Assistência Emergencial no Combate à covid-19 (nome da doença causada pelo novo coronavírus) e fez o primeiro empréstimo na semana passada à China, num total de 7 bilhões de yuans (US$ 1 bilhão), com prazo de 30 anos para o repagamento.

"O NBD está inteiramente disposto a considerar novos projetos semelhantes ao preparado para China e está conduzindo consultas com seus outros países-membros", disse ao Valor o vice-presidente para Risco, Estratégia, Parcerias e Pesquisa, Sarquis J. B. Sarquis, que é o brasileiro na direção do banco.

Sarquis informou que já estão em andamento consultas com o governo brasileiro. Uma autoridade em Brasília confirmou as tratativas. A expectativa é a de que, uma vez acertado o pedido de crédito, o dinheiro entre em ritmo rápido no Brasil, no prazo de um mês.

O banco do Brics aprovou empréstimos de US$ 1,5 bilhão a projetos no Brasil em 2019. A meta do banco para o Brasil é aprovar de US$ 1,5 bilhão a US$ 2 bilhões em projetos com os setores público e privado neste ano. Poderá manter semelhante fluxo nos anos seguintes, conforme Sarquis.

"A corrente crise é oportunidade para responder aos hiatos de saúde pública e de infraestrutura social, que foram claramente evidenciados tanto em países desenvolvidos quanto em desenvolvimento", disse Sarquis. Ele lembra que o NBD tem mandato para apoiar esforços nessa direção, conforme sua estratégia de promover projetos de infraestrutura e de desenvolvimento sustentável.

O financiamento emergencial pode ter impacto não só estrutural, mas também contracíclico nas economias e sociedades, tornando-as mais resilientes diante de choques adversos desta natureza, avalia o vice-presidente do banco sediado em Xangai (China).

Ele nota que, no Brasil, o NBD tem procurado progressivamente desenvolver projetos não só com o setor público mas também com o privado. Há demanda crescente e diversificada de países como o Brasil, a Rússia e a África do Sul para projetos com o setor privado, ou seja, projetos com risco não soberano.

"No caso do Brasil, foi o primeiro país a contar com projeto não soberano, inclusive na modalidade de 'corporate finance'. Foi o primeiro também a contar com investimentos em 'equities' em diferentes setores de infraestrutura. O banco inaugurou essa modalidade em fins de 2019."

Por causa da covid-19, a conferência anual do banco do Brics, prevista para abril no Rio de Janeiro, poderá ser adiada para maio. É quando será confirmado o nome do novo presidente, que será um brasileiro, pelo acordo de rotatividade entre os cinco sócios - Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul.

___________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Com laboratórios sobrecarregados, Embrapa vai ajudar a produzir testes

Rafael Walendorff

Cristiano Zaia

24/03/2020

 

 

Num momento em que a rede privada de laboratórios de exames médicos dá fortes sinais de sobrecarga, a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) vem sendo chamada pelo governo a ajudar na produção de testes para diagnóstico do novo coronavírus. Em muitos casos país afora, pacientes já não conseguem mais realizar o exame nos centros de medicina diagnóstica.

Fontes ouvidas pelo Valor afirmaram que os laboratórios da empresa que dispõem de equipamentos de biologia molecular vão ser utilizados para os exames de identificação da doença. A Embrapa conta neste momento com dez laboratórios habilitados para a realização dos testes.

A medida foi tratada com a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, e articulada com o colega da Saúde, Luiz Henrique Mandetta - seu conterrâneo e colega de partido -, no último fim de semana e há uma possibilidade de ser anunciada pelo presidente Jair Bolsonaro nos próximos dias.

"A ideia é que o Brasil comece a fazer os testes de diagnóstico e identificação, se pessoas estão ou não com vírus, em grande quantidade. A Embrapa vai poder ajudar com a infraestrutura que tem", disse uma fonte da estatal.

Além de ceder os espaços, a Embrapa avalia usar seu efetivo de pesquisadores para a realização dos testes de covid-19, doença respiratória causada pelo novo coronavírus e que vem registrando rápido avanço no Brasil.

A ideia articulada pelo governo é mobilizar a estrutura de grande capilaridade da estatal espalhada pelo Brasil para a elaboração de testes com a técnica "RT-PCR" (sigla em inglês para transcrição reversa seguida de reação em cadeia da polimerase). A medida é capaz de identificar a presença ou não do vírus na amostra analisada. O método é utilizado em laboratórios de diversas áreas de pesquisa, como a agropecuária.

Os dez laboratórios já dotados dessa infraestrutura capazes de contribuir para os exames se encontram nas unidades da Embrapa Acre (Rio Branco/AC), Agrobiologia (Seropédica/RJ), Cerrados (Planaltina/DF), Tabuleiros Costeiros (Aracaju/SE), Mandioca e Fruticultura (Cruz das Almas/BA), Agroindústria Tropical (Fortaleza) e Hortaliças (Brasília).

Nessas unidades, pesquisadores fazem a extração e sequenciamento de DNA para identificação de microorganismos em plantas, por exemplo. Na Embrapa Hortaliças, são feitos testes de detecção de vírus que ocorrem em hortaliças pelo método RT-PCR.

O Valor apurou ainda que o governo solicitou levantamentos a universidades e institutos de pesquisas sobre certos tipos de equipamentos e laboratórios que pudessem ajudar nos testes do novo coronavírus. O objetivo é ajudar a desafogar as demandas dos laboratórios da rede pública de saúde.

___________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

País vai na contramão global, diz advogado

Adriana Aguiar

24/03/2020

 

 

Advogados trabalhistas e entidades como a Associação Nacional dos Magistrados Trabalhistas (Anamatra) e Ministério Público do Trabalho (MPT) criticaram a medida editada pelo governo federal que suspendia contratos trabalhistas por quatro meses.

A MP expande o conceito de calamidade pública para atingir outras esferas, justificando medidas de desproteção social, segundo José Eymard Loguércio, sócio do escritório LBS Advogados. Reduzir ou suspender salários está na contramão do que tem sido implementado em outros países, segundo o advogado.

Ainda de acordo com Loguércio, ao autorizar medidas unilaterais do empregador que recaem exclusivamente sobre os empregados, sem oferecer nenhuma compensação, seja para a empresa, seja para o trabalhador, há uma ruptura com o que estabelece a Constituição, inclusive quando fala que redução salarial somente pode ser realizada com acordo coletivo.

"O mais grave desse MP é que não estabelece nenhuma responsabilidade do Estado para com a ausência de atividade econômica."

Segundo a advogada trabalhista Juliana Bracks, do Bracks Advogados, o artigo revogado poderia resultar em uma grande quantidade de reclamações na Justiça do Trabalho. Isso porque, essa previsão poderia gerar fraudes por parte de empresas que incluiriam seus funcionários em qualquer tipo de curso para gerar menos custos, com o pagamento de apenas uma bolsa em valores definidos pela companhia, sem pagamento de salário.

Para ela, a previsão era "totalmente absurda"

Ela lembra que a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) já previa a suspensão de contratos para fazer curso de qualificação, desde que negociado com sindicato. Agora, seria em acordo individual, sem que qualquer tipo de negociação ou fiscalização sobre as condições e curso oferecidos.

Segundo ela, as demais alterações da MP (Como antecipação de férias individuais e coletivas e flexibilização de pagamento do terço de férias até novembro) já vinham sendo negociadas por empresas e sindicatos. "O restante das previsões é excelente. O único artigo equivocado foi revogado."

"Ficou muito claro que o que se espera é que o governo subsidie medidas", afirma Cássia Pizzotti, sócia da área trabalhista do Demarest Advogados. Para a advogada, causa preocupação a MP não tratar da redução salarial.

O segundo artigo da medida estabelece que, durante o estado de calamidade pública, o empregado e o empregador poderão celebrar acordo individual a fim de garantir a permanência do vínculo empregatício e o acordo terá preponderância sobre os demais instrumentos normativos, legais e negociais, respeitados os limites da Constituição. Para a advogada, se trata de uma "brecha para desavisados", já que a Constituição veda redução salarial exceto mediante convenção ou acordo coletivo. "A MP não tem condições de mudar a Constituição."

Mayra Palópoli, do Palópoli & Albrecht Advogados, afirma que diversos clientes, nas poucas horas que o artigo 18 ficou em vigor, entraram em contato com ela, pensando na sua aplicação, mas que sua recomendação era aguardar porque, na sua opinião, o dispositivo tinha uma flagrante inconstitucionalidade.

Para a advogada, o artigo afrontava os direitos a garantia ao salário mínimo e de irredutibilidade de salário e o princípio da dignidade da pessoa humana, previstos na Constituição. "Esperamos que o governo procure uma saída mais equilibrada, que possa ajudar empresas a saírem da crise mas que assegurem aos empregados o mínimo de salvaguarda de direitos."