Valor econômico, v.20, n.4974, 03/04/2020. Artigos, p. A14

 

O desafio de implantar o auxílio emergencial para os informais

Paiva e Souza Bartholo

03/04/2020

 

 

A aprovação pelo Congresso Nacional do auxílio emergencial para trabalhadores informais, em resposta à pandemia do coronavírus, foi um grande avanço. Em contexto dramático sob as óticas sanitárias e socioeconômica, nada mais correto que fornecer alguma segurança de renda às pessoas vulneráveis que perderam rendimento em consequência das medidas de isolamento necessárias à contenção da covid-19. No entanto, esta lei representa somente o início de um desafio que deverá ser cumprido muito rapidamente: fazer com que as transferências cheguem aos beneficiários, sem expô-los ao risco.

Em nota técnica recentemente publicada pelo IPEA, estimamos que, caso alcance todos os potencialmente elegíveis, o benefício emergencial poderá atender 117,5 milhões de pessoas integrantes das 36,4 milhões de famílias nas quais há um ou dois beneficiários diretos. Isso corresponde a cerca de 55% da população brasileira.

Trata-se de um desafio inédito: gerar folhas de pagamento para um público enorme e preparar a logística de forma que o dinheiro alcance essa parte da população em tempo recorde. Felizmente, não partiremos da estaca zero: nossas estimativas indicam que mais de 75% do público elegível já está inscrito no Cadastro Único para Programas Sociais, do governo federal. O Cadastro foi criado em 2001, mas ganhou escopo e abrangência ao longo do tempo por ser a plataforma de informações do Programa Bolsa Família. E é graças ao Bolsa Família, tantas vezes criticado com argumentos rasteiros, que dispomos de uma infraestrutura operacional capaz de implementar grande parte do auxílio emergencial.

Ainda assim, esta celebração deve ser bastante comedida por três motivos essenciais. Primeiro, a lei necessita de regulamentação sobre como a seleção de beneficiários e a operação de pagamento do benefício extraordinário vão funcionar.

Segundo, porque mesmo que o Cadastro Único facilite em muito a chegada do benefício às famílias vulneráveis, há um processo nada fácil a ser concretizado. É preciso gerar uma folha de pagamentos que nunca foi feita anteriormente, seja pelo fato de termos um novo benefício, seja porque, mesmo dentro do Cadastro, um novo público será alcançado para além do Bolsa Família. Depois, será necessário enviar numerário para os quatro cantos do país em uma escala muito maior do que a usualmente realizada para o Bolsa Família. Finalmente, as pessoas precisam conseguir acessar os recursos.

Com isso, duas questões sérias emergem. Cerca de 70% dos beneficiários do Bolsa Família fazem seus saques diretamente em agências da Caixa, lotéricas ou correspondentes bancários. Essas pessoas não possuem conta corrente, poupança ou cartão de débito. Obviamente, o pagamento do auxílio emergencial, amplamente divulgado, chamará grande atenção dos beneficiários do Bolsa Família e de outros adultos de famílias cadastradas. O planejamento do pagamento precisa levar isso em conta e evitar ao máximo aglomerações nos locais de pagamento, sob o risco de gerar um trágico evento de transmissão do vírus.

Todos queremos que os recursos cheguem rapidamente às pessoas. Mas é preciso que cheguem com segurança. A segunda questão: muitas famílias cadastradas não são atualmente beneficiárias do Bolsa Família e, por isso, terão que receber seus cartões sociais para poder realizar o saque, pois também não possuem nenhum tipo de conta nos bancos oficiais federais. Provavelmente, será outra operação de escala inédita.

Para o público que não está no Cadastro Único nem nos registros de contribuintes ou de microempreendedores individuais, a tarefa é ainda mais complexa: coletar informações de milhões de indivíduos de baixa renda, sem contrariar as recomendações sanitárias de distanciamento social, e posteriormente aplicar checagens e verificações de duplicidade, usuais em grandes cadastros.

Para viabilizar esse desafio, o Executivo federal precisará de rapidez e racionalidade. O melhor a ser feito é dividir a tarefa em duas: a concessão de benefícios por meio do Cadastro Único e a identificação e concessão para os ainda não cadastrados. Dessa forma, garantiríamos ao menos para o público do Cadastro (que são a maioria dos potencialmente elegíveis conforme mencionamos acima) que o benefício seja pago durante o mês de abril.

Para os não cadastrados, o principal é que a preocupação legítima em evitar pagamentos indevidos não se torne uma camisa de força. No contexto atual, o objetivo maior é atender pessoas e famílias em situação de necessidade. Estamos frente a uma situação social crítica: não há justificativa para que excessos burocráticos deixem essas famílias vulneráveis sem a devida proteção.

Nossa recomendação, muito pragmática, é de que é hora de confiar nos instrumentos e na tecnologia social existentes. Eles já estão testados. O tamanho do desafio desaconselha que soluções potencialmente inovadoras - como operar por meio de ONGs ou construir soluções baseadas em Fintechs etc - tenham papel central. Inovações em políticas públicas de grande magnitude requerem testes e, infelizmente, agora não temos tempo para isto.

Cumprido o desafio e atenuados os efeitos econômicos e sociais da covid-19, nos resta esperar que o Bolsa Família e o Cadastro Único sejam finalmente reconhecidos como políticas públicas prioritárias. O Bolsa Família merece contar com regras claras que garantam reajustes regulares das linhas de pobreza e valores dos benefícios, assim como com o orçamento necessário para atender a todas as famílias que a ele fazem jus. Nos parece inaceitável que até hoje o programa se mantenha sujeito a reduções por meio de atos administrativos discricionários.

Juntos, Bolsa Família e Cadastro Único estruturam as ações governamentais voltadas à população de baixa renda e representam um salto civilizatório. Têm sido extensivamente avaliados, mais do que qualquer outra política pública, e seu resultados são excelentes. Não podem ser criticados com leviandade. Uma pena que seja necessária uma pandemia para que isso seja plenamente reconhecido.