O globo, n.31893, 01/12/2020. Mundo, p. 26

 

Bolsonaro e Fernández finalmente conversam

Janaína Figueiredo 

01/12/2020

 

 

A morte do craque Diego Maradona ajudou a distender uma conversa que era difícil para ambos ena qual, segundo altas fontes governamentais, foi decidido deixar os desentendimentos para trás. Quase um ano após aposse do presidente da Argentina, Alberto Fernández, e depois da troca de muitas farpas e ofensas envolvendo até mesmo parentes dos dois chefes de Estado, foi possível ontem uma conversa de trabalho com o presidente Jair Bolsonaro.

O diálogo durou quase uma hora e foi presenciado, do lado brasileiro, pelo ex-presidente José Sarney, o chanceler Ernesto Araújo e o secretário especial da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência, almirante Flávio Augusto Vianna Rocha. Do lado argentino estavam o chanceler Felipe Solá e o embaixador argentino no Brasil, Daniel Scioli, que, após o telefonema, disse ao GLOBO“sentira satisfação de uma missão cumprida”.

 EMBAIXADOR FOI PEÇA-CHAVE

A data escolhida celebra o encontro dos então presidentes Raúl Alfonsín e José Sarney, em Foz de Iguaçu, em 30 de novembro de 1985, considerado um primeiro passo importante para a fundação do Mercosul. Scioli foi, de fato, o grande promotor da conversa. Desde que chegou a Brasília, em meados deste ano, o embaixador se aproximou do governo brasileiro e de figuras-chave do círculo íntimo do presidente, entre elas Vianna Rocha e o deputado Eduardo Bolsonaro. Para o governo argentino, a conversa de ontem foi “excelente”.

—Esteéumd ia extra or diná: rio, e a partir de agora vamos avançar numa agenda de integração ambiciosa. Vamos organizar visitas de governadores argentinos ao Brasil, e a prime irajá acontecerá semana que vem —comentou Scioli.

A realidade é que este primeiro contato era fundamental para ambos os presidentes. Coma Argentina mergulhada numa crise profunda, Fernández finalmente entendeu que precisa construir um relacionamento possível com o Brasil de Bolsonaro. As pressões empresariais são grandes. Pelo lado argentino, existe a convicção de que a derrota de Donald Trump nos Estados Unidos deixará o governo brasileiro mais isolado e, portanto, mais predisposto atentar uma reaproximação coma Argentina governada pelo peronismo.

Segundo uma alta fonte do governo argentino, na conversa Fernández defendeu a necessidade de deixar para trás os desentendimentos, e Bolsonaro esteve de acordo. Ao longo da conversa, o presidente brasileiro foi se soltando, e inclusive agradeceu à Argentina pela colaboração em questões sanitárias.

O início do diálogo foi facilitado pelo reconhecimento, por parte do presidente brasileiro, de que “Maradona foi um dos melhores jogadores do mundo”. Ainda segundo a fonte argentina, o brasileiro propôs uma série de acordos em matéria de segurança, combate ao crime organizado e narcotráfico, circulação de pessoas durante a pandemia, revisão da Tarifa Externa Comum (T EC, já em processo) e desburocratização do Mercosul.

O presidente argentino também mencionou sua preocupação pela questão ambiental, e citou especificamente a Amazônia. Bolsonaro, segundo as fontes argentinas, não fez comentários.

BIDEN LIGA PARA FERNÁNDEZ

Para Fernández, o contato foi um grande esforço, dada sua mágoa com Bolsonaro e seu filho Eduardo por ataques a seu filho, Estanislao, uma famosa drag queen em seu país. Para fontes argentinas, o chefe de Estado “fez um esforço enorme”, que deve ser entendido no contexto de uma crise gravíssima, pois “sem o Brasil não se pode avançar”.

Para uma fonte do governo brasileiro, a conversa “foi muito boa, paz e amor total”. Houve troca de gentilezas, humor e cordialidade e cogitou-se um encontro pessoal. Segundo essa fonte, Bolsonaro disse que ao Brasil interessa que a Argentina esteja bem, assim como à Argentina interessa que o Brasil esteja bem. Além das gestões do embaixador argentino, o Itamaraty também trabalhou intensamente para realizar a comunicação entre os dois chefes de Estado. O diálogo entre os chanceleres Araújo e Solá foi outro elemento central, segundo fontes diplomáticas.

Nos últimos meses, o governo brasileiro reclamou do protecionismo argentino e suas consequências para o comércio bilateral. Exportações brasileiras, especialmente de automóveis, estão sendo barradas na fronteiras e sua entrada no país vizinho tem demorado mais de 90 dias, superando os prazos da Organização Mundial do Comércio (OMC) para a liberação das chamadas licenças não automáticas de importação. Fontes do governo brasileiro afirmaram que a tensão bilateral diminuiu recentemente pela decisão do Brasil de dar tempo ao país vizinho para sua recuperação.

Ontem, Fernández também conversou por telefone com o presidente eleito dos EUA, Joe Biden, que ligou para ele após o argentino ter sido o primeiro líder estrangeiro a cumprimentá-lo por sua vitória, e ambos conversaram sobre a situação econômica da América Latina, entre outras coisas. Já o presidente Bolsonaro continua no cada vez menor grupo de líderes que não cumprimentaram Biden, junto com o russo Vladimir Putin, o mexicano Andrés Manuel López Obrador e o norte-coreano Kim Jong-un.