Valor econômico, v. 21, n. 5172, 21/01/2021. Brasil, p. A10

 

Planalto recorre a “diplomacia paralela” para obter vacinas

Fabio Murakawa

21/01/2021

 

 

Aumentam dentro do governo pressões pela demissão do chanceler Ernesto Araújo
A saída de Donald Trump do poder e as dificuldades do Brasil para importar insumos da China e vacinas da Índia contra o coronavírus pioraram a situação do chanceler Ernesto Araújo dentro do governo.

Ao mesmo tempo em que aumentam pressões pela sua demissão, o Palácio do Planalto montou uma “diplomacia paralela” para dialogar com ambos os países, com os quais o Brasil vem queimando pontes graças à condução dada por Araújo à política externa.
Discípulo do escritor Olavo de Carvalho, ícone da extrema-direita brasileira, o ministro das Relações Exteriores não conversa com o embaixador da China, Yang Wanming. Sob o seu comando, a representação do Brasil junto à Organização Mundial do Comércio (OMC) rechaçou em outubro uma demanda da Índia para a quebra de patentes relacionadas ao combate à pandemia, alinhando-se aos EUA então ainda presididos por Donald Trump.

Com o chanceler enfraquecido e o país carente de vacinas, coube ao ministro da Casa Civil, Walter Souza Braga Netto, montar uma espécie de força-tarefa formada por ministros de outras áreas para conversar com indianos e chineses para tentar uma solução.

Ontem, uma nota da Secretaria Especial de Comunicação Social (Secom) informou que houve uma conferência telefônica entre Yang Wanming e os ministros da Saúde, Eduardo Pazuello, da Agricultura, Tereza Cristina, e das Comunicações, Fábio Faria.
A nota informa que o Itamaraty, “por meio da embaixada do Brasil em Pequim, tem mantido negociações com o governo da China”. Mas admite que “outros ministros” têm conversado com Yang.

“Esse tipo de coordenação está ocorrendo para o objetivo maior de ter os insumos para acelerar as vacinas”, diz uma fonte palaciana.

Segundo essa fonte, as áreas técnicas do Ministério das Relações Exteriores e do Ministério da Saúde também estão envolvidas nas conversas.

O país precisa dos insumos chineses para fabricar a Coronavac, do Instituto Butantan em parceria com a farmacêutica chinesa Sinovac. Esses insumos também são necessários para que a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) possa produzir a vacina desenvolvida em parceria entre a AstraZeneca e a Universidade de Oxford, com as quais mantém um convênio de transferência de tecnologia.

O Brasil aguarda o envio de 2 milhões de doses dessa vacina, que hoje é fabricada em um laboratório indiano. Na semana retrasada, Bolsonaro pediu ao premiê Narendra Modi a antecipação do envio do produto. Porém, a Índia não colocou o Brasil em uma lista prioritária para receber o imunizante, que é a principal aposta de seu governo para vacinar a população.

Em entrevista ao Valor publicada ontem, o vice-presidente Hamilton Mourão se colocou à disposição para dialogar com o vice-presidente da China, Wang Qishan, para buscar uma solução. Dentre os membros do governo, Mourão é o que tem melhor interlocução com os asiáticos. Mas ele ainda não foi acionado.

Tido como ídolo por Bolsonaro e Araújo, Trump deixou ontem a Casa Branca para dar lugar ao democrata Joe Biden. O chanceler, que já havia perdido toda a interlocução com a China, agora já não conta com a simpatia do presidente dos Estados Unidos, por suas reiteradas insinuações de que houve fraude na eleição americana.

Para uma graduada fonte do governo, a situação de Araújo beira o “insustentável”.
A maior oposição a Araújo está entre os ministros militares. Mas outros auxiliares de Bolsonaro também veem no chanceler uma ameaça aos interesses brasileiros.

Uma fonte ligada aos militares lembra que nem no regime militar (1964-1985), forjado no auge da Guerra Fria, houve alinhamento tão automático do Brasil à política externa à americana.

Há quem acredite que Araújo não sairá agora. Isso porque, quando pressionado a demitir alguém ou quando vazam informações na imprensa, Bolsonaro costuma colocar o pé no freio. Uma possibilidade é que a demissão ocorra após a eleição no Congresso, diluída entre outras trocas ministeriais.
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Problema é a demanda elevada, afirma chanceler

Raphael Di Cunto

Marcelo Ribeiro

21/01/2021

 


Ministro diz que se cenário se repete em outros países e não dá prazos para regularizar a situação
O ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, negou em reunião com deputados ontem que o atraso no envio de insumos da China para o Brasil para a produção de vacinas contra a covid-19 pelo Instituto Butantan e pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) tenha motivação política e disse que isso tem ocorrido com vários países por causa da alta demanda mundial.

Ele não quis dar prazos para regularizar a situação, mas defendeu que é preciso “ver o copo meio cheio, e não metade vazio”.
“Nossa análise [...] é de que realmente há uma demanda muito grande por esses insumos no mundo. Acho que todos os países, praticamente, estão no processo de vacinação. Temos presente que outros países que precisam importar esse insumo da China estão basicamente na mesma situação, ainda não receberam as entregas. Precisamos desses insumos, inclusive países europeus, enfim”, afirmou Araújo, na reunião com os deputados.

O governo Bolsonaro tem adotado iniciativas que desagradam ao governo chinês, como estudar a restrição à chinesa Huawei como fornecedora de equipamentos para a internet 5G no Brasil e feito críticas ao país asiático. Araújo e o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-RJ), filho do presidente Jair Bolsonaro, já bateram-boca nas redes sociais com o embaixador da China no Brasil.

Apesar desse desgaste, Araújo disse aos deputados que não verificou um componente político no atraso. “Não identificamos nenhum problema de natureza política em relação ao fornecimento desses insumos provenientes da China. Isso é uma avaliação que a gente tem que fazer permanentemente, claro, ficar atento a isso”, afirmou.

O ministro disse que está acompanhando o assunto diariamente e pediu prioridade desde dezembro para a liberação dos insumos ou tratativas para importação de vacinas de outros países. “A China tem um governo, como todo mundo sabe, complexo, uma burocracia complexa e isso requer esse acompanhamento que está sendo feito diariamente, em coordenação conosco, todos os dias, o tempo todo.”
A reunião com a comissão da Câmara para acompanhamento das ações contra a covid-19 ocorreu por videoconferência e não foi transmitida pelos canais regulares da casa. O encontro foi convocado com representantes dos ministérios da Saúde e das Relações Exteriores para tratar do problema dos insumos, que já fez com que a Fiocruz atrase em um mês a entrega das vacinas e põe em risco a continuidade da fabricação de mais doses do imunizante pelo Butantan.

Para o chanceler, é preciso ver o lado bom da situação brasileira: há duas vacinas já aprovadas, capacidade logística para distribuí-las e duas instituições capazes de produzi-las. “O desafio é muito mais complexo, não basta ter os institutos e as vacinas aprovadas. Tenho certeza de que estamos enfrentando melhor do que muitos países”, afirmou. Ele destacou que a China e Índia, duas potências farmacêuticas, vacinaram muito pouco sua população e que há reclamações da população na França e na Itália.

Os deputados, inclusive aliados do governo, cobraram soluções para destravar a importação e continuar a produção de vacinas. Pediram também agilidade para liberar a importação de vacinas prontas da Índia pela Fiocruz. Araújo disse que está atuando diariamente para tentar acelerar esses processos, assim como outras partes do governo, mas não quis falar em prazos e só repetiu que “está tudo bem encaminhado” com China e Índia.

O ministro disse que “os fatos concretos” mostram que o volume de exportações para a China cresceu no governo Bolsonaro e que há uma “relação madura, construtiva, muito correta”. Ele destacou que vários equipamentos hospitalares e insumos foram importados do país asiático durante a pandemia, sempre com atuação da embaixada em Pequim. “Praticamente sempre é preciso que a embaixada faça parte desse processo diante da complexidade da burocracia chinesa. Em nenhum momento nos foi negado esses insumos necessários para a nossa população.”
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Pequim aguarda gesto de Bolsonaro para melhorar relação

Daniel Rittner

21/01/2021

 


Entre os acenos esperados, está reconhecimento público, por autoridades brasileiras, de que houve excesso nos ataques à China
Os chineses querem um “gesto” do governo Jair Bolsonaro sobre a normalização das perspectivas Brasília-Pequim. Dois acenos são considerados positivos neste momento. Um envolveria reconhecimento público, por autoridades brasileiras ou até por Bolsonaro, de que houve excesso nos ataques à China. Outro seria uma sinalização de que a Huawei não enfrentará restrições para construir redes de 5G no Brasil.

“Os chineses não vão dizer isso publicamente, são muito cuidadosos, mas estão profundamente chateados”, afirma o deputado Fausto Pinato (PP-SP), que preside a Frente Parlamentar Brasil-China. Ele sugere a demissão do chanceler Ernesto Araújo. “O presidente está com a faca e o queijo na mão para trocá-lo”, observa.
Um dos principais sinólogos do país e coordenador do núcleo de estudos Brasil-China da FGV Direito, no Rio de Janeiro, o professor Evandro Menezes de Carvalho diz que, sem nenhum movimento novo, os canais diplomáticos com Pequim continuarão obstruídos.

“A cada conflito com o governo chinês, vemos representantes do Congresso Nacional organizarem comitivas para conversar com o embaixador da China, atuando como bombeiros da política externa brasileira, para tentar apagar o fogo causado pelo governo Bolsonaro. Mas arrisco dizer que a China cansou dessas comitivas, que procuram resolver o problema no varejo, e não no atacado”, avalia Carvalho, que também é consultor do Veirano Advogados.

Continua o professor: “O Brasil acha que pode se relacionar com a China de modo pontual, enquanto a China relaciona-se com o Brasil tendo em vista um escopo de objetivos mais amplos. Um deles é o leilão do 5G. O que isso tem a ver com a vacina? Com a vacina, em si, nada. Mas com a politização da vacina, feita pelo governo brasileiro, tem tudo a ver. O problema da importação de insumos da Coronavac pode estar inserido nesse contexto mais amplo da desastrada política externa para a China”.
O ministro-conselheiro da embaixada chinesa em Brasília, Qu Yuhui, afirma que a questão do insumo para vacinas é “técnica” e não deve ser confundida com a participação da Huawei no 5G. “São assuntos separados”, ressalta.

Um observador das relações bilaterais lembra que, além de pronunciamentos favoráveis do vice-presidente Hamilton Mourão à participação da Huawei, todos os demais gestos das autoridades brasileiras foram na linha de críticas veladas ou alertas escancarados sobre o risco à privacidade da fornecedora chinesa.

Segundo o deputado Pinato, a questão do insumo para as vacinas não é política e o atraso só ocorre pela alta demanda de países interessados na Coronavac. O Brasil, afirma, terá que esperar sua vez na fila para os próximos envios. No entanto, frisa Pinato, é uma nação prioritária na agenda externa de Pequim e poderia receber tratamento especial se esses gestos forem concretizados.

Para além dos problemas com a China, um diplomata que atua na linha de frente com países da Ásia comenta reservadamente que a gestão da pandemia no Brasil foi muito mal vista pelo continente, onde críticas à política ambiental e polêmicas sobre o risco à democracia tiveram pouca repercussão em 2019 e 2020.

Muitos países asiáticos têm histórico de baixa proteção das florestas e da biodiversidade, bem como fragilidade das instituições democráticas. Portanto, observa esse diplomata, as críticas feitas a Bolsonaro na Europa têm pouca ressonância na Ásia.

O prejuízo à imagem do Brasil teria ocorrido, porém, com o discurso de que o isolamento social poderia quebrar a economia. Para os asiáticos, conforme essa versão, a postura de evitar danos econômicos mesmo sob risco da saúde das pessoas pegou mal e foi vista com antipatia.