Título: A entrevista e a resposta
Autor: Jarbas Passarinho
Fonte: Jornal do Brasil, 01/03/2005, Outras Opiniões, p. A11

Raymond Aron, nos seus Polémiques, escritos nos tempos sombrios da guerra fria, ao retratar a agitação política em que vivia a França, nos debates entre comunistas e anticomunistas, disse que ''os adversários contentam-se com monólogos alternados, cada um preso em si mesmo, enquanto procura-se, em vão, autêntica discussão, pois a verdadeira função da polêmica não é converter, mas ajudar cada um a compreender o outro''. Norberto Bobbio foi mais sintético: ''Dois monólogos não fazem um diálogo''.

O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso tem sido constante crítico do governo Lula, no exercício de um direito democrático, sem dúvida. Tem provocado respostas diretas do presidente e de seus acólitos, ministros ou não, o que é também do jogo democrático, que tem na polêmica política uma das suas características. São monólogos os dos antigos ''companheiros de viagem esquerdista'', longe da compreensão mútua definida pelo mestre francês, talvez com certa ingenuidade, ao menos para o tipo de polêmica no Brasil, onde o objetivo é atingir no âmago o adversário. As críticas não são rebatidas com dados concretos, mas com a retaliação em vez da retorsão.

Faz poucos dias, o Correio Braziliense entrevistou Fernando Henrique e lhe concedeu duas páginas do jornal. Deu respostas, muitas vezes convincentes segundo suas convicções, ora mais severas, conquanto não ofensivas à pessoa do presidente Lula, mas não raras cáusticas. Discordou da reforma do Palácio da Alvorada financiada por empresários: ''Sempre me opus a mexer nisso. Há tantas coisas mais urgentes. O Palácio, se precisar de melhores condições, o governo paga, sem precisar recorrer a empresários''. Tocou em dois pontos nevrálgicos. A compra do avião de 56 milhões de dólares e, indiretamente, a mordomia presidencial. Quanto ao avião, podem-se discutir duas coisas: é esse o avião? Precisa pagar à vista? Da mordomia pessoal, fez comparação delicada: ''Nunca fiz uma roupa, nem a Ruth, com dinheiro público. Vendi uma casinha para poder custear minha presença na presidência esses anos todos''. Uma alfinetada que poderia ser contornada é induzida pela pergunta se ele recomendara ao Lula que lesse mais sobre a história do Brasil: ''Mas ele está achando que está inventando a roda. A cada lugar que vai, diz que está fazendo pela primeira vez na história''. Isso não se relaciona com ignorância pessoal, mas do que foi feito antes. Foi, certamente, interpretada como se o intelectual debochasse do trabalhador que não é letrado, o que ele não o soube esclarecer. Afora isso, as respostas foram estritamente políticas, de defesa da sua gestão anterior. Lembrou que enfrentou as crises da Rússia e da Argentina, e ainda assim ''o PIB cresceu quase 5% em 2000''. Foi até elegante não lembrando que se o crescimento caiu em 2002 para 1,9% deveu-se ao fato de Lula ser o favorito nas eleições. Simone de Beauvoir dizia que ''a ideologia da direita é o medo''. E foi o medo, sobretudo da comunidade financeira, de que Lula, se seguisse a retórica das campanhas anteriores, romperia com estardalhaço com o demonizado FMI, promoveria o calote da dívida externa e rejeitaria o capital estrangeiro, temas que empolgavam a esquerda, em cujo nome chegaria ao poder. Tanto é assim que o investimento direto de capital estrangeiro, já diminuído ao fim do governo FHC, cairia mais ainda quase 10 bilhões de dólares em 2003, cujo PIB desabaria para menos 0,2%. Aí está a origem da ''herança maldita'', até que o rumo capitalista do governo viesse a eliminar o medo dos ricos, que saudaram efusivamente Lula, em Davos, e, em compensação, o faria ser apupado parcialmente no Fórum Mundial Social de Porto Alegre.

Não creio que apenas a entrevista ao Correio Braziliense tenha irritado, além da fronteira da civilidade o presidente da República, num de seus improvisos desastrosos. Revelou que ''um alto companheiro'' disse-lhe - logo no início da sua gestão - que ''a instituição que lhe coube administrar estava quebrada, já que a corrupção que aconteceu antes de nós foi muito grande''. Ao que o presidente teria dito: ''Se o que você me está dizendo é verdade, você só tem o direito de dizer para mim. Para fora, feche a boca e diga que a instituição está preparada para ajudar no desenvolvimento do país''. Claro que isso comprometeria a honorabilidade do governo anterior. A oposição, já de si pequena, abalou o PSDB, que logo interpretou a conduta do presidente como improbidade administrativa, pelo que, nos termos constitucionais, um presidente pode ser processado por crime de responsabilidade. Insinuar impeachment é de extremo exagero. Admitir prevaricação já exagero não é, ainda que visto à luz da paixão política. Duvidar de que o presidente não estivesse sóbrio é insultuoso. Defender a ocultação pública em nome da governabilidade prova que o ministro da Justiça reage mais como renomado advogado que como jurista, e prometer fazer ''o feitiço virar contra o feiticeiro'' é tentar justificar uma prevaricação por outra, se houver. Especialmente depois que o indigitado confidente nega haver se referido à corrupção, a menos que a instituição estivesse falida, o pedido de desculpa é um imperativo de reparação ao ofendido na sua honra.

Haverá grandeza para fazê-lo? Eis a dúvida.