O Estado de São Paulo, n.46362, 23/09/2020. Política, p.A4

 

Bolsonaro mantém tom de confronto em fala da ONU

Jussara Soares

23/09/2020

 

 

Discurso. Na Assembleia-Geral das Organizações das Nações Unidas, presidente distorce dados ambientais e diz que seu governo é vítima de “campanha brutal de desinformação'

O presidente Jair Bolsonaro abriu ontem os debates da 75.ª Assembleia-geral das Organizações das Nações Unidas (ONU) com um discurso contundente em que manteve tom de confronto e apresentou seu governo como vítima de perseguição internacional. Na tentativa de se eximir das cobranças por recordes de queimadas na Amazônia e no Pantanal, Bolsonaro distorceu dados, atribuiu a índios e caboclos a disseminação do fogo nas florestas e disse haver uma "campanha brutal de desinformação".

Pela primeira vez, por causa da pandemia do coronavírus, as declarações dos líderes mundiais ocorreram de modo virtual. Criticado pela condução da crise do coronavírus, o presidente insistiu na narrativa contra o isolamento social, usou informações falsas sobre a pandemia e defendeu a hidroxicloroquina, medicamento sem eficácia comprovada para o tratamento da covid 19.

No fim do discurso, o presidente uso do termo "cristofobia", usado, em geral, para falar de perseguição a minorias cristãs em países de maioria islâmica. "Faço um apelo a toda a comunidade internacional pela liberdade religiosa e pelo combate à cristofobia", disse. "O Brasil é um país cristão e conservador e tem na família sua base."

Bolsonaro gravou o pronunciamento na semana passada e fez vários ajustes. Críticas à atuação da ONU e o posicionamento contra o aborto, por exemplo, foram retirados. Como é tradição, o Brasil sempre abre os trabalhos na Assembleia da ONU. O discurso, de 15 minutos, foi iniciado com um lamento pelas vítima da covid-19. Em seguida, o presidente disse que "o vírus e o desemprego" precisavam ser "tratados igualmente".

Bolsonaro acusou a imprensa de politizar a doença e espalhar pânico e criticou a quarentena recomendada por autoridades de saúde para evitar o contágio. "Sob o lema 'fique em casa' e 'a economia a gente vê depois', quase trouxeram o caos social ao País", afirmou. Com mais de 137 mil mortos, o Brasil é o segundo país do mundo em número de óbitos, só perdendo para os Estados Unidos, e o terceiro em casos, com mais de 4,5 milhões de pessoas contaminadas.

O presidente disse, ainda, que o Supremo Tribunal Federal (STF) delegou a prefeitos e governadores medidas para conter a propagação da covid19, distorcendo o teor da decisão da Corte. Diferentemente do que mencionou Bolsonaro, porém, o STF não retirou da União a responsabilidade pelas ações de combate à pandemia, embora tenha assegurado autonomia a Estados e municípios.

Para rebater críticas na área ambiental, Bolsonaro também recorreu à condição de vítima, embora tenha evitado "fulanizar" os críticos de sua política ambiental, como fez no ano passado, quando citou França e Alemanha. Com acordos comerciais sob ameaça, como os da União Europeia e do Mercosul, afirmou que incêndios no Pantanal e na Amazônia vêm sendo usados numa "brutal campanha de desinformação", com o objetivo de atacar o governo.

"A Amazônia brasileira é sabidamente riquíssima. Isso explica o apoio de instituições internacionais a essa campanha escorada em interesses escusos que se unem a associações brasileiras, aproveitadoras e impatrióticas, com o objetivo de prejudicar o governo e o próprio Brasil", argumentou.

Ao ignorar dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), indicando o aumento da devastação, o presidente alegou que o alastramento do fogo está relacionado à queima de roçadas por parte de caboclos e índios. "Nossa floresta é úmida e não permite a propagação do fogo em seu interior. Os incêndios acontecem praticamente nos mesmos lugares, no entorno leste da floresta, onde o caboclo e o índio queimam seus roçados em busca de sua sobrevivência, em áreas já desmatadas."

Logo depois, disse que a extensão da Amazônia e do Pantanal dificulta o combate às queimadas e o trabalho de fiscalização como a extração ilegal de madeira. "Nossa Amazônia é maior que toda a Europa Ocidental. Daí, a dificuldade em combater não só os focos de incêndio, mas também a extração ilegal de madeira e a biopirataria", justificou. Mesmo assim, afirmou que mantém política de "tolerância zero" com o crime ambiental.

Acenos. Bolsonaro usou o discurso na ONU para fazer acenos aos EUA. Ao citar a tecnologia 5G, disse estar interessado em parcerias que "respeitem nossa soberania, prezem pela liberdade e pela proteção de dados". O leilão do 5G no Brasil, previsto para 2021, é palco de disputa tecnológica entre EUA e China.

A 42 dias das eleições americanas, Bolsonaro entrou na campanha do presidente Donald Trump, que tenta um segundo mandato, ao elogiar iniciativa lançada por ele como solução para o conflito no Oriente Médio. Na outra ponta, atacou a Venezuela, ao dizer, sem apresentar provas, que o derramamento de óleo no litoral brasileiro, em 2019, foi causado pelo país vizinho.

'Campanha'

"A Amazônia é riquíssima. Isso explica o apoio de instituições internacionais a essa campanha para prejudicar o governo."

Jair Bolsonaro

PRESIDENTE DA REPÚBLICA