Valor econômico, v. 21, n. 5184, 08/02/2021. Brasil, p. A5

 

Cidade do sertão de AL vive ressaca pós-auxílio

Marina Falcão

08/02/2021

 

 

Canapi enfrenta ameaça da fome e de calote no comércio

Em plena pandemia de covid-19, os moradores de Canapi, no sertão de Alagoas, vivenciaram no ano passado uma inédita sensação de prosperidade econômica. Quase metade dos 17,2 mil habitantes do município, que pode ser considerado um dos redutos políticos do novo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP), recebeu o benefício. Mas, juntamente com suspensão dos recursos, veio a ressaca, acompanhada da ameaça de calotes no comércio e do fantasma da fome.

A 211 km de Maceió, na divisa com Pernambuco, Canapi é um retrato fiel do sertão nordestino: seco, miserável e abandonado. No município, em que as aposentadorias e a prefeitura são as duas principais fontes de renda, a distribuição do auxílio emergencial somou mais de R$ 39 milhões, o equivalente a um terço do PIB da cidade.

“Nós temos um comércio muito forte de troca-troca de motos. Houve momentos em que as pessoas não conseguiam encontrar moto para comprar”, conta José Valério Martins Silva, chefe de gabinete do prefeito de Canapi, Vinícius Lima (PP).

Em boa parte do país, a palavra carestia está em desuso, mas em Canapi o termo está na boca do povo. E a carestia, período de encarecimento do custo de vida e escassez de recursos, começou em janeiro. No mercadinho, o empresário Gidivaldo Abílio da Silva teme que clientes que compraram fiado nos últimos meses não consigam quitar seus débitos. “A gente vai cobrando as pessoas, mas muitos não estão podendo pagar, tem que dar um tempo, a gente é que sofre com isso”, afirma, com a lista de devedores nas mãos.

As vendas de serviços de banda larga foram as melhores da história da Link Internet em 2020 em Canapi. Moradores das comunidades urbanas compraram pacotes com mensalidades de R$ 75 e fidelidade de um ano. “Em janeiro, o fluxo de clientes na loja já diminuiu bastante e, agora, alguns clientes começaram a ficar inadimplentes”, conta Taís Oliveira de Souza, única vendedora da loja.

No ramo da construção, a história é a mesma. O estoque de produtos a base de ferro chegou a ficar zerado no terceiro trimestre nas lojas. “Muita gente carente vinha, comprava cem blocos, cinquenta, comprava uma lajezinha para banheiro. Agora parou quase tudo”, conta Áurea Costa, dona de uma pequena fábrica de pré-moldados.

Mesmo com o comércio esfriando rapidamente, o preço do blocos pré-moldados, que subiu 20% em seis meses, se mantém elevado. No entanto, a principal reclamação dos canapienses é em relação ao preço dos alimentos, principalmente do feijão. Na feira da cidade, às quarta-feiras, o quilo do feijão mulatinho aumentou 40% de junho para cá, de R$ 5 para R$ 7. A alta ocorreu ou “por causa da pandemia” ou “por conta do preço da gasolina”, explicam os feirantes.

O gasto com alimentação passou rapidamente a não caber mais no orçamento das famílias mais humildes. No bairro de Floriano Peixoto, mais conhecido como favelinha pelos moradores, a dona de casa Maria José chegou a receber R$ 1.200 por mês do benefício, que usou exclusivamente para comprar comida. Com o marido desempregado, fazendo bicos esporádicos de coveiro, Maria José voltou a contar apenas com R$ 487 do Bolsa Família para sustentar quatro crianças. “Minha preocupação é os meninos acordarem cedo e me pedirem as coisas e eu não ter para dar”, diz, desabando no choro, na frente do filhos. Ela complementa a renda cobrando R$ 10 para varrer calçadas.

A miséria consegue subir de patamar na zona rural do Canapi. A agricultura mal dá para a subsistência, e a pecuária, que já foi a maior atividade econômica do município, encolheu nos últimos anos por causa da estiagem.

No sítio Poço do Boi, área mais pobre do município, o fantasma da barriga vazia assombra as famílias. Havia carne na geladeira do agricultor Antônio Silva até meados de janeiro, mas na semana passada só tinha água. Na despensa, meio pacote de feijão e meio pacote de arroz. “Tenho medo de passar fome.”

Na casa em que Antônio mora com a esposa Ivaneide, vivem ainda quatro dos oito filhos do casal. A família está recebendo R$ 706 por mês referente ao Bolsa Família. Não sobra nada para Ivaneide ir à área urbana comprar remédio para epilepsia. Muito menos para tratar uma outra doença que ela não consegue dizer o nome porque não sabe ler o que está anotado no papel entregue por um médico antes da pandemia.

A barriga de Ivaneide está inchada como de uma gestante de nove meses há anos. O sintoma é característica de ascite - ou “barriga d’água” - um acúmulo de líquido na barriga geralmente causado por uma doença hepática. O marido diz que sonha em comprar uma moto para poder levar a esposa para se tratar sem precisar “abusar da boa vontade dos outros”.

Também moradora de Poço do Boi, a dona de casa Jaidê Santos da Silva diz que juntamente com o marido chegou a receber R$ 1.800 do auxílio emergencial. Gastou tudo com comida e na obra de construção de terraço cimentado, um sonho que nutria há 30 anos. Mas benefício foi suspenso antes que ela conseguisse terminar de pagar ao pedreiro. Jaidê ainda ficou devendo R$ 914 no armazém e R$ 1 mil no mercadinho. Ela conta que não dorme pensando nas contas, pois, se não quitar o que deve, não terá de volta a confiança dos comerciantes para comprar fiado novamente. “Você só é livre quando paga suas contas”, afirma.

Para o pedreiro Claudiano da Silva, a esperança é a volta do auxílio emergencial: “Ano passado não conseguia atender a todos, agora o movimento caiu pela metade”.

Canapi foi o 15º município mais impactado pelo auxílio emergencial, em termos proporcionais, segundo levantamento dos economistas Écio Costa, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), e Marcelo Freire, da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE). A cidade mais beneficiada foi Santarém Novo (PA), onde a injeção de recursos representou 38,1% do PIB. Todas as demais cidades do ranking estão nas regiões Norte e Nordeste, sendo sete delas no Maranhão.

Com orçamento mensal de apenas R$ 2 milhões, sendo 90% referentes ao Fundo de Participação dos Municípios (FPM), a prefeitura de Canapi está estudando formas de ampliar um benefício próprio de assistencialismo para os moradores da cidade no valor de R$ 75. “O nosso orçamento não tem porte para fazer frente ao espaço deixado pelo auxílio”, diz Valério, da prefeitura.

O município registra até agora 86 casos de covid-19 e cinco mortes confirmadas pela doença, segundo Secretaria de Saúde do Estado de Alagoas.

__________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Reduto de Lira, Canapi aposta na volta de benefício

Marina Falcão

08/02/2021

 

 

Inflação é outra preocupação na localidade frequentemente lembrada por ser a cidade natal de Rosane Collor

Com a eleição de Arthur Lira (PP) a presidente da Câmara dos Deputados, a expectativa de que o auxílio emergencial voltará a ser distribuído cresceu em Canapi, principalmente na zona rural.

Famosa por violentos confrontos de terras entre famílias de pistoleiros, Canapi também é frequentemente lembrada por ser a cidade natal de Rosane Collor, ex-esposa do ex-presidente e senador Fernando Collor (Pros). Mas a grande referência política no município é Lira, cujo partido se tornou o maior do Nordeste nas eleições do ano passado, dobrando de tamanho e alcançando 285 prefeituras sob gestão na região.

Sob o comando de Lira, a Câmara dos Deputados trata como urgente a discussão sobre a retomada do auxílio ou de outra medida de proteção social. E é essa a esperança dos moradores de Canapi - numa pequena amostra do que parece ser o sentimento dominante nas cidades pobres do país.

Em Alagoas, Lira passou a disputar o protagonismo político com o governador Renan Filho (MDB), que está no segundo mandato de uma gestão bem avaliada e deve indicar um sucessor para as eleições no próximo ano.

Reeleito em Canapi, o prefeito Vinícius Lima (PP) é um fiel escudeiro do novo presidente da Câmara. Em relação ao presidente Jair Bolsonaro, Lima teve uma postura discreta durante a campanha eleitoral, evitando nacionalizar o debate na cidade.

A população de Canapi está bem longe de um consenso em relação ao presidente. Na roça, onde o lulismo é mais forte, a dona de casa Jaidê Santos da Silva destoa como uma apoiadora incondicional do presidente Jair Bolsonaro. “Eu acho boa pessoa. Boa pessoa, graças a Deus. Ajudou e eu votei nele e votaria de novo, quantas vezes ele precisar, pois ele tá fazendo o melhor pela gente”, afirma.

Na área urbana, Áurea Costa, dona de uma pequena fábrica de pré-moldados, está no time dos que não votaram nem votariam no presidente. “Ele é uma pessoa que diz uma coisa agora e daqui duas, três horas desdiz o que falou, não gosto desse tipo de gente. Não fez nada pela pandemia, levou na brincadeira dizendo que não era coveiro”, afirma.

Há ainda o grupo dos que não têm uma opinião fechada sobre o presidente. “Eu tenho dúvida porque a gente não sabe se foi ele mesmo que aprovou esse auxílio, ou se foi alguém do lado dele, que forçou ele a assinar, que forçou ele a fazer o projeto. A gente não entende tanto as coisas que funcionam lá para dentro”, diz o pedreiro Claudiano da Silva.

Alheios às discussões em Brasília sobre o impacto do novo auxílio nas contas públicas, os moradores de Canapi estão divididos também quanto à possibilidade de volta do benefício. Enquanto uns acham que deve perdurar até que a pandemia tenha fim, outros defendem que é mais urgente o governo agir para controlar os preços.

“Com o preço parado, a gente ganha pouco, mas ganha. Agora com o preço subindo não estou ganhando nada. Com lucro que tive no mês passado não consegui repor nem metade do meu estoque”, conta a empresária Alcione Assunção, dona de uma loja de material de construção de madeira e ferro.

A cozinheira Fátima Freitas conta que a mãe, dona de um restaurante, teve dificuldade de contratar pessoas para atender à demanda das festas de fim de ano. “Ninguém queria trabalhar. Criou-se uma falsa ilusão de riqueza”, afirma Fátima.