O globo, n. 31973, 19/02/2021. Sociedade, p. 13

 

Epidemia de subnotificaçao

19/02/2021

 

 

O Brasil atingiu ontem a marca de 10 milhões de resultados positivos em testes para Covid-19 desde o início da epidemia. Pesquisadores afirmam que, em razão das falhas de notificação, o número real de casos acumulados deve ser pelo menos o dobro, e lacunas nos dados os impedem de saber se os diagnósticos feitos chegaram aos pacientes a tempo.

A subnotificação pode ser dimensionada por meio de pesquisas de soroprevalência, feitas por amostragem com testes para identificar anticorpos. Mas a última no Brasil ocorreu em julho do ano passado. No mundo, são 110,2 milhões de diagnósticos acumulados.

O epidemiologista Pedro Hallal, da Universidade Federal de Pelotas, retomou a pesquisa de soroprevalência agora e deve divulgar novos resultados nacionais em março. Porém, ele tem uma estimativa do tamanho da população que já teve contato com a Covid-19.

— O Brasil tem, no mínimo, 20 milhões de casos acumulados, mas eu acho que está mais perto dos 40 milhões —diz o pesquisador, baseado na quantidade de resultados positivos obtidos no Rio Grande do Sul, onde a pesquisa não foi interrompida.

Outro grupo de pesquisa, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (USP), usa o que se acredita ser a taxa de letalidade da doença no país (uma morte a cada 90 casos) e chega a um número parecido. Os pesquisadores liderados por Domingos Alves avaliam que o número real de pessoas expostas à Covid-19 já passou de 21 milhões.

Tanto nas observações de Hallal quanto no modelo de Alves, a notificação hoje é melhor do que no início da pandemia. Quando o país tinha 1 milhão de diagnósticos positivos, o número estimado de casos era de 6 milhões.

COMBATE ENFRAQUECIDO

A falta de testes é um sintoma da falta de cuidado que se dedica à vigilância epidemiológica no país, diz Maria Amélia Veras, professora da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo.

—Nós não temos uma política consistente para testagem que tenha sido guiada por critérios epidemiológicos racionais e nos permita ter alguma orientação —afirma a epidemiologista.

A Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) afirma que a falta de orientação geral por parte do Ministério da Saúde abriu espaço à falta de padronização nas orientações, e enfraqueceu a capacidade da rede de combater o espalhamento do vírus.

— Não se conseguiu estabelecer uma regra básica de saúde pública: se a doença é transmissível, isola-se o doente para ele não transmitir, analisam-se os contatos para ver se contraíram o vírus, e assim seguir bloqueando — diz Gulnar Azevedo, presidente da entidade e professora da Uerj. — Os países que bloquearam bem, como Austrália e Nova Zelândia, fizeram isso. O Brasil não, por várias razões, como a testagem.

Analisando dados de notificação, os cientistas estão tentando descobrir se os testes estão chegando a tempo de fazer diferença.

Veras, da Santa Casa, coordena o núcleo de pesquisa Observatório Covid-19 BR, no qual a cientista social Lorena Barberia busca os dados para os epidemiologistas trabalharem.

— Em cada estado da federação, entramos com um pedido via Lei de Acesso à Informação para obter dados “anonimizados” da testagem, incluindo o município de residência dos casos — conta a pesquisadora. — Estamos tentando mapear se o esforço e a intensidade dos programas chega com boa cobertura nos lugares mais populosos e mais vulneráveis.

Porém, dada a diversidade de critérios regionais para notificar um caso, os números oficiais do Ministério da Saúde são pouco consistentes. Há casos de Covid-19 notificados por RT-PCR (o padrão ouro para casos ativos da doença), mas também por testes de anticorpos (que detectam infecções passadas) e até exames de sintomas.

O Ministério da Saúde não respondeu, até a conclusão desta edição, quanto cada tipo de teste representa no bolo de 10 milhões de diagnósticos. A pasta também não informou qual o intervalo médio para notificação de resultados.

— Em várias partes do país, a demora ainda é de 12 dias para o resultado sair. Isso afeta a estratégia de vigilância epidemiológica. Se demora 14 dias, a pessoa provavelmente nem está mais transmitindo o vírus —diz Barberia.

SEM MAPEAR MUTAÇÕES

Alguns dados que o Ministério da Saúde não consegue estimar, como a porcentagem de exames positivos ou negativos, têm sido reportados pelos laboratórios privados.

A Dasa, rede particular de diagnósticos clínicos, foi responsável, até agora, por cerca de 600 mil diagnósticos positivos de Covid-19 no país, por RT-PCR. Em média, 26% deles retornaram positivos, mas a taxa variou de acordo com a demanda. Quando a procura é maior, a positividade tende a cair, conta Gustavo Campana, diretor médico da Dasa.

Com a emergência de novas variantes do vírus, é preciso adequar os testes para que seja possível diferenciar as versões do Sars-CoV-2 que estão circulando. Mas a vigilância genômica e a rede de testagem não estão dando conta de monitorar a variante P.1, de Manaus, que se espalha pelo país.

—A vigilância genômica é ausente, e não há critérios para sequenciar amostras e mapear as mutações — diz Veras, da Santa Casa.