Correio Baziliense, n.21114 , 16/03/2021. Política, p.4

 

Rumo ao abraço populista

Rosana Hessel

16/03/2021

 

 

CORONAVÍRUS » Com a piora do quadro da covid-19, o que vem fazendo com que a popularidade esteja em queda, especialistas enxergam a conversão do governo Bolsonaro em uma gestão dissociada da saúde fiscal do país e voltada ao agrado de grupos de interesse para manter apoio

Diante do agravamento da pandemia da covid-19 no Brasil — epicentro de contágios e mortes no mundo —, e do ressurgimento do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva como forte adversário político para as eleições de 2022, o presidente Jair Bolsonaro colhe os frutos que plantou, em 2020, ao pregar contra o distanciamento social, as vacinas e o uso de máscaras. E acende o alerta entre especialistas ao sinalizar ações populistas, tal como a intervenção que fez no comando da Petrobras.

A aprovação popular do chefe do Executivo vem caindo e está praticamente empatado com o petista nas preferências de voto, segundo pesquisas recentes. Isso aumenta as chances para a adoção de uma agenda econômica que proponha aumento de gasto público e impeça privatizações. Analistas ouvidos pelo Correio não afastam essa possibilidade diante do agravamento da crise sanitária, que, na semana passada, somou 12.766 mortes.

Pesquisa XP/Ipespe, divulgada na última sexta-feira, mostra que 61% dos entrevistados acham que a atuação do governo contra a pandemia é ruim ou péssima. Analistas ressaltam que Bolsonaro ainda vai ter que enfrentar, em 2021, a economia cambaleante e com dificuldades para se recuperar da recessão provocada pela pandemia — que deve se estender, pelo menos, pela primeira metade deste ano.

Apesar de Bolsonaro ter pouco espaço fiscal para aumentar gastos, deu sinais de que pode optar pelo populismo, como quando interferiu na Petrobras e apoiou o reajuste de policiais durante o debate da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) Emergencial, no Congresso. Ele ainda ensaiou atirar contra “o senhor mercado”, principal apoiador do presidente até agora, mas que foi criticado por ele na última live semanal.

O mercado defende o último pilar de uma garantia mínima de austeridade fiscal: o teto de gastos, que limita o aumento das despesas à inflação do ano anterior. Ainda não precificou o risco de uma guinada populista de Bolsonaro, mas tenta ignorar a crise ao olhar apenas para os bons ventos do mercado externo, que avança enquanto o Brasil empaca.

“Bolsonaro pode até tentar ser populista, mas será muito difícil, pois precisaria até tirar uma foto tomando vacina, algo que Donald Trump (ex-presidente dos Estados Unidos) fez escondido”, comentou o cientista político e professor emérito da Universidade de Brasília (UnB) David Fleischer. Para ele, o presidente terá problemas em 2022, caso o Supremo Tribunal Federal (STF) confirme a decisão do ministro Edson Fachin, que anulou as condenações contra Lula e devolveu os direitos políticos ao petista.

A aprovação da PEC Emergencial, mais desidratada do que o proposto pela equipe econômica, também acendeu o alerta de que o populismo de Bolsonaro pode ganhar força. Como moeda de troca para a aprovação de uma nova rodada do auxílio emergencial, limitado a R$ 44 bilhões, os gatilhos fiscais, que devem ser acionados para o controle de gastos, ficaram capengas e com pouco efeito prático. Afinal, permitiram a progressão automática nas carreiras, o que garante aumento salarial aos servidores.

Analistas também não descartam a saída do ministro da Economia, Paulo Guedes, se Bolsonaro ficar desesperado para recuperar a popularidade. E, assim, mostrar que jamais foi um liberal. “Ele pode até tentar adotar uma agenda econômica mais populista, mas há pouco que possa fazer. O fiscal está atado”, avalia Sergio Vale, economista-chefe da MB Associados, acrescentando que se Bolsonaro “rifar Guedes para colocar um populista na economia, o mercado explode de vez e, aí, em 2022 vai ser pior ainda”.

Quadro difícil

O especialista em contas públicas Felipe Salto, diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI), do Senado, lembra que o quadro fiscal e econômico é intrincado. Com o elevado risco de a vacinação contra a covid-19 ser lenta, a retomada da economia será prejudicada. “A perspectiva de crescimento para este ano poderá ser minada se a vacinação não avançar. Do lado das contas públicas, a dívida crescerá ainda por vários anos. Não há espaço para aventuras”, frisa. Para ele, o governo precisa ter uma atuação focada contra a doença. “Isso só acontecerá com ampla vacinação e reforço das medidas prudenciais de restrição, uso de máscaras etc”, aconselha.

O cientista político Rafael Favetti ressalta que o populismo é um fenômeno global, que ganhou força nas sociedades em rede. “A presença de Paulo Guedes deu a ilusão de que uma mentalidade militarista conseguiria navegar bem no liberalismo ortodoxo. Mas liberalismo e nacionalismo não andam de mãos dadas em lugar algum. Um exemplo do nacionalismo é a defesa da soberania, que impede o avanço das fileiras do liberalismo, e isso torna o convívio quase impossível”, reforçou. Ele acredita que a agenda liberal de Guedes foi abandonada, tanto que não para de perder força no governo. “O cuidado com o fiscal perdeu, no ano passado, o principal soldado, o Mansueto Almeida”, observou.

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À espera de um milagre

Roberto Brant

16/03/2021

 

 

Vivemos em uma realidade tão depressiva que me esforço sempre para não parecer demasiadamente pessimista. Afinal, se não formos capazes de manter a esperança, apesar de tudo, é melhor ficar em silêncio, pois se desistirmos de perseguir o impossível, nunca vamos alargar os limites do possível. Para que a esperança tenha valor e sentido, no entanto, é preciso que ela se concilie com a razão e não se deixe envenenar pela mais baixa das paixões — a paixão política.

Nesta semana que passou, o ambiente político no Brasil sofreu uma importante transformação. O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que havia sido excluído das disputas eleitorais por uma decisão judicial, volta agora a dispor de direitos políticos plenos por nova intervenção do Poder Judiciário.

Conservo desde muito tempo a opinião de que o nosso Judiciário interfere em demasia no processo político e no campo das competências dos outros Poderes, o que é uma desfiguração da vida democrática, que não comporta uma hierarquia entre os Poderes do Estado. Nas democracias, quem deve eleger os governantes é o povo e não as cortes, como decidiu admiravelmente a Justiça dos Estados Unidos no seu último pleito presidencial.

A volta de Lula à vida política, e sua inevitável entrada no processo eleitoral, deu novo ânimo a grande parte das pessoas que assistem com desaprovação e temor às omissões e aos movimentos erráticos do governo Bolsonaro diante da pandemia, do desemprego e da estagnação econômica, que estão ferindo de morte nosso país. Afinal, surgiu um concorrente à altura que, ao menos, põe em dúvida a continuidade desse governo por mais quatro anos, a partir de 2022.

A presença de Lula é uma volta à normalidade da nossa vida pública, pois a interdição de sua candidatura, em 2018, que nos parece hoje estar maculada por motivações políticas, privou o povo brasileiro de uma verdadeira liberdade de escolha. Apesar disso, penso que a perspectiva de termos de escolher, em 2022, entre Bolsonaro e Lula, é um cenário desalentador, senão de desespero.

Não há dúvida de que o país está à deriva e sem poder de reação, diante da mais grave crise sanitária de nossa história e de uma estagnação econômica também sem precedentes, porque nosso governo não compreende o que está acontecendo e não sabe o que fazer. Seria um erro, no entanto, supor que a solução para nossas crises seja uma volta ao passado.

Os governos do PT, depois de um início correto, quando foram mantidos os fundamentos da economia e ampliadas as políticas sociais, nos anos seguintes desorganizou o Estado brasileiro, aumentou os deficits fiscais e a dívida pública para atender, exclusivamente, sua clientela no serviço público, quase arruinou a Petrobras e outras empresas públicas e lançou o país no caminho da recessão e do cinismo moral. Essas são heranças que não podem ser esquecidas e buscar, de novo, o mesmo modo de governar, não vai tirar o país do abismo em que estamos.

Bolsonaro e Lula são dois modos populistas de governar, embora haja diferenças entre eles. Ambos estão aliados aos interesses que capturaram o Estado brasileiro desde há muito tempo, sejam as corporações do serviço público para quem o Estado é sua propriedade, sejam grupos privilegiados do setor privado que não sobrevivem sem os favores do Estado. Por isso, somos um país tão rico e, ao mesmo tempo, ainda tão pobre.

Para termos algum futuro, e até mesmo para sobrevivermos como uma sociedade civilizada, precisamos fazer as coisas de um modo diferente do que tem sido feito até agora. Voltar ao passado para nos livrar do presente não é o melhor caminho se ainda queremos ter algum futuro.

Hoje, isso parece muito difícil ou mesmo improvável, mas repito aqui algumas palavras da filósofa judia Hannah Arendt, que viveu realidades muito piores: todos os homens, de um modo misterioso, são manifestamente dotados para fazer milagres e, enquanto puderem agir, são aptos a realizar o improvável e o imprevisível e realizam-no continuamente, quer saibam disso, quer não.