Valor Econômico, n. 5205, v.21, 11/03/2021. Política, p.A14

 

 

 

Herança maldita’ de Dilma será desafio para Lula, dizem consultores

 

Lula deu prioridade a questões sociais e deixou de lado mensagens ao mercado e empresariado

Por Carolina Freitas — De São Paulo

 

 

Consultores políticos viram ontem no discurso de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ontem marca uma mudança de status do político. O tom e as mensagens fazem uma transição do Lula ex-presidente da República para o Lula candidato ao Planalto em 2022. Em paralelo, o ex-presidente deve se preparar para enfrentar as críticas referentes aos erros do o governo Dilma, classificado como a “herança maldita” do PT.

 

Segundo cientista político Rafael Cortez, sócio da Tendências Consultoria. embora o ex-presidente tenha deixado em aberto ontem se será ou não o nome do PT nas eleições do ano que vem, Lula deu ênfase a questões sociais e à população mais desfavorecida, ao mesmo tempo em que deixou em segundo plano, pelo menos por enquanto, as mensagens a empresários e ao mercado. O foco do ex-presidente, analisa Cortez, foi a defesa do legado do PT na Presidência.

 

“O mercado ainda considera elevado o risco de Lula eventualmente voltar à Presidência. Ao falar ontem contra a autonomia do Banco Central e as privatizações, Lula reforça esse risco”, diz o analista. “Do ponto de vista estratégico, não parece que Lula está preocupado em fazer sinalizações tão cedo sobre uma política econômica ortodoxa.”

 

Essa decisão estratégica do ex-presidente, segundo Cortez, faz sentido quando se compara o cenário político e econômico de 2002 com o que vem se formando para 2022. O próprio Lula citou a experiência da eleição de 20 anos atrás, quando se elegeu presidente pela primeira vez. O petista lembrou da aliança que costurou com setores conservadores, ao atrair para a posição de vice o empresário José Alencar. Cortez diz que o momento agora é outro.

 

“As ideias liberais perderam a força em relação a 2003 [primeiro ano do governo Lula]. A ortodoxia é mais questionada nesse momento. A pandemia e as próprias contradições do governo Bolsonaro na área econômica trazem dúvidas em relação ao liberalismo”, diz o cientista político.

 

Cortez lembra que quando Lula assumiu em 2003 era quase um sinônimo de “ingovernabilidade” para agentes financeiros e econômicos, mas que, agora, já é conhecido pelo que fez como presidente. O ponto vulnerável do discurso do petista, ao focar no legado do PT, é ter que falar também da administração da ex-presidente Dilma Rousseff. “O governo Dilma é um ponto importante. Não é só o governo Lula que condiciona a visão de risco do mercado”, diz Cortez.

 

O cientista político Humberto Dantas, diretor de Educação do Centro de Liderança Pública (CLP) e coordenador da pós-graduação em Ciência Política da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (Fesp SP), vai no mesmo tom. “As idiotices econômicas do governo Dilma em seis anos são comparáveis ao que fez Bolsonaro em dois anos e meio”, afirma.

 

O professor da Fesp SP lembra que a maior conquista pró-mercado da gestão Bolsonaro, a reforma da Previdência, foi obtida pelo então presidente da Câmara dos Deputados, deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ).

 

“Foi um discurso muito magnético, por mais que se discorde de Lula. O ex-presidente mostrou o bicho político que é. Está em forma, esperto e bem orientado em termos estratégicos”, analisa Humberto Dantas.

 

O professor diz que Lula sabe que sua presença no jogo político polariza o debate e reconhece esse fenômeno. “Lula chama Bolsonaro para a dança e Sergio Moro para a guerra. Fica claro a disposição de Lula em bater Bolsonaro nas urnas.”

 

Para Dantas, ao evocar a figura de Alencar como vice-presidente, Lula sinaliza para o perfil que vai procurar para compor sua chapa se de fato concorrer em 2022. O cientista político aposta no nome da empresária Luiza Trajano, dona do Magazine Luiza. Nessa toada, Lula surpreendeu os analistas por fazer um discurso moderado, sem rancor pelas condenações que sofreu e sem culpar quem apoiou o impeachment de Dilma. “Lula sinaliza passos em direção ao centro”, diz Dantas.

Rafael Cortez, da Tendências, aponta que o efeito mais imediato da volta de Lula ao jogo deve ser um impulso à unificação da esquerda. Ainda que Ciro Gomes (PDT) siga afastado do ex-presidente, as demais lideranças devem se aproximar. Dantas ratifica: “É muita notícia boa para a esquerda num só momento.”

 

 

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Discurso emocional encobre distorções sobre pré-sal e Petrobras

 

 

Governo Lula paralisou os leilões em um momento de auge das commodities

Por Daniel Rittner — De Brasília

 

 

 

A eloquência e as hipérboles usadas pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no discurso em São Bernardo do Campo têm uma compreensível carga emocional e podem arrancar lágrimas da esquerda, mas incluem distorções em pelo menos uma área: o que houve com a Petrobras e com o desenvolvimento do pré-sal.

 

Desde o anúncio da existência de grandes reservas de petróleo em águas ultraprofundas, em 2006, o governo Lula paralisou os leilões em um momento de auge das commodities. Um freio de arrumação, diante das descobertas, era justificável. As discussões em torno de um novo marco regulatório - complexo, pesado, talvez ineficiente - levaram quatro anos.

 

Mais do que ter injetado R$ 40 bilhões na Petrobras, como sugeriu Lula em sua fala, capitalização da Petrobras feita em 2010 foi uma espécie de berço da “contabilidade criativa” e das “pedaladas fiscais” engendradas pelo ex-secretário do Tesouro Nacional Arno Augustin. No papel, o Tesouro fez aporte à Petrobras. Na prática, levou dinheiro para salvar as contas daquele ano.

 

Dizia o Valor em reportagem de 27 de outubro de 2010: “Pela cessão de 5 bilhões de barris de petróleo, entraram no caixa da União R$ 74,8 bilhões, em setembro, a título de receita de concessão. Desses, o Tesouro utilizou R$ 42,9 bilhões para subscrever ações da Petrobras. A sobra de R$ 31,9 bilhões foi para as contas do mês passado. [...] Sem essa receita, o resultado teria sido um déficit primário de R$ 5,8 bilhões.”

 

O petista também comentou que uma “empresa pública bem gerida como a Petrobras”, quando falava sobre privatização e em óbvia referência à gestão da estatal em sua época, pode ser ótima para o país. Alto lá!

 

Pode-se discutir se um país que virou exportador de petróleo, como o Brasil, deve ou não continuar usando as cotações internacionais para balizar o preço nas bombas dos postos. Mas é fato que, no fim do governo Dilma Rousseff, a Petrobras tornou-se a petroleira mais endividada do planeta. Não tinha pra ninguém: Saudi Aramco, Rosneft, Shell, Exxon Mobil, Pemex.

 

Controlando os valores do diesel e da gasolina nas refinarias, a estatal teve perdas bem maiores do que no petrolão. Segundo cálculos do Centro Brasileiro de Infraestrutura (CBIE), acumulou prejuízo de R$ 71,2 bilhões entre 2011 e 2014 sem repassar para os preços domésticos aquilo que pagava na importação de derivados. Para comparação: em 2015, declarou perdas de R$ 6,2 bilhões em seu balanço com os escândalos de corrupção.

 

Voltando aos atrasos na exploração do pré-sal: os governos Lula e Dilma desperdiçaram um período de bonança internacional deixando uma riqueza recém-descoberta em águas ultraprofundas. Dilma fez um único leilão, o do Campo de Libra, em 2013. Sem disputa. Apenas um consórcio liderado pela Petrobras apareceu.

 

Depois de um lapso de quatro anos, a segunda rodada do pré-sal ocorreu apenas em 2017. Foi quando as “Big Oil” (gigantes mundiais do setor) fincaram bandeira no Brasil. Foram outras quatro rodadas sob o regime da partilha e mais um leilão de excedentes da cessão onerosa. A produção disparou e as receitas com royalties vão em trajetória ascendente. Perdeu-se tempo à toa. Como dizia Moreira Franco, ex-ministro de Minas e Energia, “a era da pedra não acabou por falta de pedra”. A era do petróleo também não vai acabar por falta de petróleo.

 

Se alguma crítica às gestões subsequentes da Petrobras pode ser feita, vai justamente por esse caminho: a excessiva concentração de esforços em uma única frente. A petroleira de Lula/Dilma era um elefante que investia em refinarias, distribuição, postos de combustíveis, fertilizantes, gasodutos, usinas térmicas. No Brasil e no exterior.

 

A petroleira de Temer/Bolsonaro, com indicadores financeiros bem mais saudáveis, é um bicho que investe quase exclusivamente na exploração de óleo e gás em águas ultraprofundas. É uma estratégia bem diferente do que fazem concorrentes, por exemplo, como a britânica BP. Será o melhor em tempos de acelerada transição energética? Lula e o PT certamente têm boas propostas a fazer, sem a necessidade de distorcer o passado.

 

 

 

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Dívida de gratidão com militância não impede petista de se voltar ao centro

 

Fernando Haddad retorna à posição de coadjuvante

Por Cristian Klein — Do Rio

 

 

Para além da retórica afiada e das eventuais pisadas de bola, que vão alimentar o Fla-Flu onde é o craque amado pela torcida e odiado pelos adversários, Lula forneceu as principais informações que se esperava em seu primeiro pronunciamento, depois de recuperar os direitos políticos.

 

Primeiro: assumiu o tom e o posto de candidato. Fernando Haddad, que até segunda-feira à tarde era tido como o plano A do PT, voltou a coadjuvá-lo no ato de reestreia.

 

Segundo: assim como não radicalizou desde que saiu da prisão, Lula não apostará na irracionalidade raivosa para competir com Bolsonaro. Sem abrir mão do eleitorado progressista e/ou indignado com os desmandos do presidente, o petista indicou que buscará ampliar as alianças, entre a classe política e o setor produtivo. É fórmula semelhante à da primeira vitória em 2002, que incluiu na vice o empresário José Alencar (PL). “Não tenham medo de mim. Eu sou radical, porque eu quero ir à raiz dos problemas desse país”, contemporizou.

 

As circunstâncias, porém, são diferentes. Lula mostrou ter dívida de gratidão com aqueles que não o abandonaram mesmo quando comia o pão que o agora ex-juiz Sergio Moro amassou, em condenações anuladas pelo ministro do STF Edson Fachin. Atenderá a militância, mas sem deixar de lado o pragmatismo. Afirmou que não tem idade para ficar remoendo mágoas.

 

O petista elencou uma rede internacional de lealdades que vai dos movimentos sociais (MST, MTST), entidades e sindicatos (UNE, CUT), religiosos (papa Francisco, monja Coen), artistas e intelectuais (Chico Buarque, Raduan Nassar, Noam Chomsky) a líderes políticos da Argentina (Alberto Fernández), Uruguai (Pepe Mujica), Bolívia (Evo Morales), Espanha (José Luis Zapatero), Itália (Massimo D’Alema) e Estados Unidos (Bernie Sanders).

 

Mas só lembrou dos presidentes de Cuba (Miguel Diaz-Canel) e da Venezuela (Nicolás Maduro) - e até de Dilma Rousseff - após o discurso de quase uma hora e meia, quando já se iniciava entrevista coletiva. São esquecimentos compreensíveis se o objetivo, como Lula sinalizou, for deixar a radicalização de lado.

 

Com a experiência de quem foi presidente por oito anos, o petista buscou tom de altivez, dando lições sobre como agiria para recuperar a economia e combater a pandemia, ou dando comandos de liderança. “Esse país não tem governo (...) Ele [Bolsonaro] não sabe o que é ser presidente; a vida inteira não foi nada. (...) Não siga nenhuma decisão imbecil do presidente da República ou do ministro da Saúde(...)”, orientou.

 

Os ataques, segundo observadores, teriam deixado Bolsonaro com o semblante abatido. Nem tanto pelas agressões pessoais - bem mais contidas na forma se comparadas à metralhadora de adjetivos que Ciro Gomes (PDT) tem usado - mas pelo conteúdo e direção do discurso. Ao falar sobre o apoio da prefeita de Paris, Anne Hidalgo, o relato de Lula soou como mensagem subliminar para se vender como o cabo eleitoral que já foi, a despeito das rejeições. Há um ano, Hidalgo foi criticada por conferir ao ex-presidente o título de cidadão honorário de Paris. “Ela teve a coragem, quando a direita escrevia nos jornais que ela ia perder as eleições por ter me levado lá. E ela ganhou as eleições”. Música para os ouvidos do Centrão.