O Globo, 03 de abril de 2021, nº 32016, Mundo, p. 22

 

Entrevista – Martin Luther King III: “Nunca existiu movimento tão  poderoso” por justiça nos EUA

Martin Luther King

Lucas França

03 de abril de 2021

 

 

No dia 4 de abril de 1968, o pastor Martin Luther King Jr., líder do movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos, foi assassinado a tiros em Memphis, Tennessee. Cinquenta e três anos depois — e no ano seguinte aos maiores protestos contra o racismo em seu país desde a época do seu pai —, o filho mais velho de King, Martin Luther King III, afirma que “nunca existiu um movimento tão poderoso” por justiça quanto o que há agora.

— Estamos em uma encarnação moderna do que meu pai chamava de “coalizão de consciência”. As pessoas estão se unindo e dizendo basta — disse King III em entrevista ao GLOBO, por e-mail.

Isso não significa que não haja riscos para o legado de Luther King, cujo movimento impulsionou a aprovação, em 1964 e 1965, da Lei dos Direitos Civis, que pôs fim à segregação racial no Sul dos EUA, e da Lei do Direito de Voto, que visava impedir que os negros e outras minorias tivessem tolhido seu direito de eleger seus representantes.

Hoje, em estados como a Geórgia, Assembleias de maioria republicana estão aprovando leis com o objetivo de reduzir a participação eleitoral, em especial de grupos que, em 2020, ajudaram a eleger Joe Biden. Para se opor a esse movimento, tramitam no Congresso dois projetos que visam garantir o exercício do voto, com a uniformização de regras em nível nacional. Não há, porém, garantias de que serão aprovados no Senado, onde há empate entre as bancadas republicana e democrata.

— Precisamos acabar com esta nova era do Jim Crow — afirmou King III, em uma referência às leis do período segregacionista.

Na entrevista, o atual diretor do Instituto Drum Major, um centro de difusão do legado de Luther King, fala também do caso de George Floyd, o segurança negro asfixiado por policiais em Minneapolis, no estado de Minnesota, em maio de 2020. Foram as imagens da violência contra Floyd que desencadearam as manifestações maciças contra a desigualdade racial e a violência policial. Antes do segurança, em março, a morte a tiros da emergencista negra Breonna Taylor, atingida por policiais que invadiram sua casa em Louisville, Kentucky, já havia provocado protestos.

Cinquenta e três anos depois da morte de seu pai, como o legado dele ainda ecoa nos EUA hoje?

Meu pai organizou manifestações não violentas e falou em favor da necessidade de erradicar o racismo, a pobreza e a violência nos Estados Unidos. Ele convocou os americanos para se juntarem a ele enquanto organizava, marchava e pressionava lideranças do governo para agirem. Hoje, nós vemos esse legado vivo, bem como americanos de todas as raças se unindo para resolverem essas questões. No ano passado, marchas pacíficas ocorreram por todo o país, clamando pelo fim da violência policial. Essas manifestações provam que o legado do meu pai está vivo e bem, além de provar que os americanos ainda estão trabalhando para realizar seu sonho.

Seu pai esteve envolvido na aprovação da Lei de Direito de Voto. Como as batalhas atuais, tanto no Congresso quanto em estados como a Geórgia, vão evoluir?

Os EUA têm uma conturbada história de supressão do voto e, agora, estamos vendo Assembleias republicanas por todo o país atuando para tornar o voto mais difícil para minorias. Os EUA precisam acabar com esta nova era de Jim Crow com a aprovação da Lei do Direito de Voto John Lewis [o nome da lei homenageia o ativista e congressista que morreu em 2020] e da Lei para o Povo. Ambas vão tornar mais fácil que americanos votem e vão assegurar que os estados não adotem práticas discriminatórias.

O governo Biden está à altura da expectativa de tantos afro-americanos que votaram nele?

Biden ganhou as eleições por conta da alta votação entre os afro-americanos e, particularmente, entre mulheres negras. É nosso trabalho cobrar o governo Biden e pressioná-lo a erradicar o racismo, a pobreza e a violência. Eles deram um grande primeiro passo com um Gabinete diverso e por meio de medidas incluídas no Plano de Resgate Americano para prestar assistência às comunidades negras, mas ainda há muito, muito mais trabalho a ser feito.

Sobre o caso de George Floyd, a indenização de US$ 27 milhões acertada entre a família dele e a prefeitura de Minneapolis é o suficiente? Como espera ver a justiça sendo feita?

Nos EUA, nós precisamos fazer mudanças significativas no policiamento para garantir que não veremos, no futuro, tragédias como o assassinato de George Floyd. A polícia deveria vir das comunidades que atende, deveria ser treinada para distensionar as situações e, o mais importante, deveria ser responsabilizada pelos seus atos. Nós precisamos ver justiça no assassinato de George Floyd e Derek Chauvin [o policial que está sendo julgado por asfixiá-lo] deve ser responsabilizado.

Não apenas a comunidade negra, mas outros setores da sociedade americana levantaram voz para que a justiça fosse feita, tanto no caso de Floyd quanto no de Breonna Taylor. Quão importante é ter uma coalizão ampla em favor da igualdade racial?

Os eventos do ano passado revelaram a desigualdade estrutural e o racismo descarado que ainda é evidente por todo o nosso país. Eu acho que muitas pessoas reconheceram, pela primeira vez, as questões profundamente enraizadas do racismo sistêmico. No ano passado, nós testemunhamos o maior e mais ativo, multigeracional e multirracial movimento por direitos civis e direitos humanos desde os anos 1960. Dos estudantes de ensino médio até os cidadãos mais idosos — negros e brancos, latinos, indígenas, asiáticos —, os americanos marcharam juntos, muitos pela primeira vez. E devemos continuar a exigir mudanças estruturais verdadeiras e duradouras.

Há diferença entre as manifestações que vimos no ano passado e as dos anos 1960?

Com o crescimento das mídias sociais, nós estamos ainda mais conectados uns com os outros e com o que está acontecendo em nosso país. Está se tornando cada vez mais difícil para as pessoas ignorarem as injustiças, já que elas são documentadas por nossos celulares e espalhadas por toda a parte.

Eu acredito que nosso país nunca viu um movimento tão poderoso quanto esse. Nós estamos em um encarnação moderna do que meu pai chamava de “coalizão de consciência”. As pessoas estão juntas e dizendo basta. Nós devemos continuar caminhando para frente com propósito e paixão, e nós vamos completar o trabalho iniciado de forma tão ousada nos anos 1960.

O senhor às vezes se sente cansado por ainda ser preciso erguer a voz contra problemas contra racismo, pobreza, desigualdade social?

Meu pai dizia: “O progresso humano não é nem automático nem inevitável… Cada passo em direção ao objetivo da justiça requer sacrifício, sofrimento e luta; os esforços incansáveis e a preocupação apaixonada de indivíduos dedicados”. Sim, é fácil se sentir cansado e frustrado com o estado do nosso mundo. Minha inspiração para continuar muitas vezes vem da minha filha, Yolanda. Ao mesmo tempo em que tenho certeza que meu pai estaria triste por ver que ainda estamos lutando por justiça, eu sei que ele estaria muito orgulhoso de sua neta e dos milhões de outros jovens que se levantam por um mundo melhor.

Existe uma tendência autoritária no mundo, como vimos nos EUA com Donald Trump e vemos, por exemplo, no Brasil de Bolsonaro. Isso muda alguma coisa na resistência não violenta que seu pai defendia?

Eu ainda acredito, de todo o coração, que a não violência é o melhor e único caminho para o que meu pai chamava de "comunidade do amor”, um mundo no qual racismo, pobreza e violência são substituídos por paz, justiça e igualdade. Não conseguimos alcançar este mundo, um lugar de paz consigo mesmo, por meio da violência.

O Brasil tem a maior população negra fora da África e foi o último país a abolir a escravidão. O racismo ainda é disseminado pelo país. Teria sugestões para abordar essa questão aqui?

Meu pai dizia que “injustiça em qualquer lugar é uma ameaça à justiça em todo lugar”, e eu acredito que nós devemos trabalhar para alcançar paz, justiça e igualdade para todas as pessoas, não apenas aqui nos EUA. O racismo sistêmico afeta comunidades negras ao redor do mundo, incluindo negros americanos e brasileiros. Eu acredito que o ano passado nos EUA mostrou que organização das comunidades pode fazer uma diferença monumental quando se trata do direito de voto e da responsabilização de pessoas em posição de liderança.