Título: O co-inventor da Guerra Fria
Autor:
Fonte: Jornal do Brasil, 19/03/2005, Internacional, p. A7

George Frost Kennan, morto ontem aos 101 anos de idade, "inventou" a Guerra Fria, juntamente com Churchill e Truman. Kennan foi o intelectual, estrategista e intérprete do conflito bipolar. Churchill, o profeta, com seu legendário discurso da "Cortina de Ferro que caía sobre a Europa...", de 1946, e a essência ¿não-ocidental da União Soviética¿. Truman, o operário, com a Doutrina de política externa que levou seu nome e mundializou a disputa entre os EUA e a URSS. Jovem ministro-conselheiro da Embaixada dos Estados Unidos em Moscou na segunda metade dos anos 40, Kennan foi um dos primeiros sovietólogos da diplomacia dos EUA. Elaborou a formulação teoricamente mais bem sustentada do que viria a ser o comportamento da União Soviética no corolário da Segunda Guerra Mundial. Para tanto, valia-se também de amplos conhecimentos sobre a história da Rússia Czarista.

Na condição de diplomata, estava sujeito às restrições de confidencialidade e publicidade que marcam a profissão. Kennan desejava, no entanto, seduzir não apenas seus superiores quanto ao formato que a política externa dos EUA deveria assumir ante uma URSS de crescentes poderes. Buscava fazer com que tais considerações transpirassem para a opinião pública dos EUA e, particularmente, a formadores de opinião de fora da "policy community" de Washington.

A maneira encontrada por Kennan foi a da redação do legendário "Longo Telegrama" que remeteu ao Departamento de Estado em 1946. O texto, com pouquíssimas alterações, foi também enviado por Kennan à mais importante revista de política externa do mundo: a Foreign Affairs . Intitulou-o As origens da conduta soviética, assinando com o curioso pseudônimo "X". O artigo mostrar-se-ia verdadeiro "guia do usuário" para a Guerra Fria.

Kennan argumentava que, apesar das substantivas diferenças ideológicas entre as linhagens de czares e a cúpula do Partido Comunista da União Soviética, não haveria grandes distinções quanto ao diagnóstico da "vulnerabilidade básica" do território russo. Este apresentava-se geopoliticamente como uma longa extensão de fronteiras porosas. Um convite a invasões externas. Para não mencionar a grande diferença étnica dos povos que compõem o entorno russo -- o que a literatura sovietóloga chama de "near abroad", o estrangeiro-próximo.

Para os czares vermelhos da União Soviética ou para Pedro, o Grande, o ataque seria sempre a melhor defesa. A URSS estaria vocacionada para o expansionismo. Não o internacionalismo proletário preconizado por Trotsky, mas uma projeção externa baseada na própria busca de espaços vitais. Projeção tanto mais nociva aos interesses dos EUA por alimentar-se de uma ideologia ¿exótica¿, nos dizeres de Kennan. Caberia então aos EUA, na métrica de Kennan, ¿envelopar¿ a URSS. Construir em volta da União Soviética um ¿cordão sanitário¿.

Nascia então a ¿doutrina da contenção¿ que imantou o mundo de 1946 até a queda do Muro de Berlim. Como a idéia de contenção, no entanto, significava muito mais do que apenas a presença militar, Kennan também contribuiu para que a noção de Guerra Fria permeasse os meios diplomáticos, empresariais, culturais, etc.

Também pela geometria de Kennan, o mundo da Guerra Fria tornou-se um ¿jogo de soma zero¿. Tabuleiro em que qualquer avanço pontual dos interesses soviéticos representava imediatas perdas para o campo ¿ocidental¿. Disputar esse jogo implicou pesadíssimos sacrifícios para a União Soviética. Exaurida por mais de 4 décadas de confronto entre superpotências, a URSS desmantelou-se em 1992. Kennan venceu.

Com sua vasta cultura e capacidade de argumentação; seu apego ao papel da força nas relações internacionais e sua crença conservadora na superioridade dos ¿valores americanos¿, Kennan foi o espécime ancestral dos falcões que, de estação em estação, montam seus ninhos no establishment político de Washington.