Correio Braziliense, n. 20701, 26/01/2020. Política, p. 2
O lado oculto da redução da violência
Renato Souza
Na última semana, a segurança pública estremeceu a relação entre o presidente Jair Bolsonaro e seu ministro mais popular, Sérgio Moro. Pressionado pelos secretários de segurança estaduais, o chefe do Planalto cogitou retirar a pasta da Segurança Pública do ministério da Justiça, esvaziando o trabalho de Moro. Na chegada à India, Bolsonaro voltou atrás na proposta, de forma a controlar a crise que ele próprio estimulou. À parte o interesse político daqueles que pretendem atingir o prestígio de Moro, a disputa também está relacionada a uma mudança recente na realidade brasileira: a redução dos índices de criminalidade.
Há dois anos, os índices de criminalidade no Brasil, em especial o de mortes intencionais, registram queda acentuada e sequencial. No entanto, em estados do Norte e Nordeste, as forças de segurança têm dificuldade em combater a violência. A expansão de facções na região desafia as autoridades e mantém em alta o número de homicídios, em decorrência da disputa por território. Nas demais localidades, porém, a queda no número de mortes nem sempre significa que o poder público esteja ganhando força. Pode revelar, na verdade, o domínio de apenas uma facção criminosa, criando uma falsa sensação de eficiência do poder público e gerando uma máscara para esconder a verdadeira face do crime.
As ações para separar Justiça da Segurança ocorreram no governo de Michel Temer, período em que as taxas de criminalidade começaram a cair. De acordo com dados divulgados pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública, os maiores índices de homicídios dolosos a cada 100 mil habitantes atualmente são registrados no Norte e Nordeste. Na região Norte, ocorreram, de janeiro a setembro de 2019, 3.937 homicídios dolosos, o que representa uma taxa de mortalidade de 21,65 pessoas a cada 100 mil habitantes. No Nordeste foram 12.032, com taxa de 21,20. No mesmo período, no Centro-Oeste, ocorreram 2.478 mortes, com uma taxa de 15,40 homicídios dolosos a cada 100 mil habitantes. No Sudeste, região que concentra a maior taxa populacional do país, estão os índices mais baixos. Foram 7.783, com taxa de mortes de apenas 8,87 a cada 100 mil habitantes.
Em todo o país, o número de homicídios caiu 21,9% nos primeiros nove meses do ano passado, em relação ao mesmo período do ano anterior. Essa foi a primeira vez que o governo realizou esse tipo de avaliação. Até então, os números da violência eram restritos a organizações civis e universidades, como o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que ainda faz o estudo mais completo e abrangente sobre o tema. De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado pelo Fórum anualmente, em 2018, o país registrou 57 mil mortes violentas intencionais. Os dados do governo falam em 49.079 mil homicídios dolosos no mesmo período, número expressivamente menor. O levantamento do ministério se baseia em boletins de ocorrência registrados pelas polícias dos estados. O estudo do Fórum leva em consideração várias fontes, como dados das secretarias de segurança pública das unidades da federação e balanços regionais.
Recorde em 2017
Em 2017, foi registrado o recorde histórico, com 63 mil assassinatos. No ano seguinte, na gestão Temer, a redução foi de 10%, na primeira baixa significativa dos homicídios em uma série de aumentos constante da violência desde 2011. Os dados recentes, divulgados pelo governo, deixam claro que a violência segue descontrolada em unidades federativas como Amazonas. Em dezembro do ano passado, o estado registrou 62 mortes. Em janeiro, o número voltou a subir, atingindo 81, enquanto o país registrava queda nos números. Em setembro, último mês avaliado pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública, foram 104, um salto em relação aos dados registrados nos meses anteriores. Nos nove meses pesquisados, foram 728 assassinatos.
O cientista político Guaracy Mingardi, especialista em Segurança Pública, destaca que os dados precisam ser analisados minuciosamente. Segundo ele, a redução dos índices criminais não significa que o Estado esteja vencendo a guerra contra o crime organizado. “Não tem lugar mais sob domínio de facções que São Paulo. No entanto, os crimes vêm caindo há 20 anos. O pico dos homicídios foi em 1999. As taxas de roubo independem de presença do crime organizado ou não. Já os assassinatos têm íntima ligação com esses grupos. No Nordeste, em 2018 e no ano passado, teve uma briga entre o Comando Vermelho e o PCC, que disputam o território, por isso registram maiores taxas de mortes dolosas”, disse.
De acordo com Guaracy, em São Paulo, existe a hegemonia do PCC. A ausência de poder de uma facção rival faz com que disputas armadas por pontos de venda de drogas e domínio mantenham os dados de mortandade em baixa. “Em alguns lugares pode ter o controle do Estado, mas em outros, não. Alguns governos estaduais fizeram investimento alto em segurança pública e reduziram as mortes de 2017 para 2018”, disse.
O especialista destaca ainda que o governo federal tem menor participação nas políticas de segurança, resumindo-se a repassar recursos e realizar algumas intervenções. De acordo com ele, o uso das tropas federais, geralmente realizado durante crises, não produz efeito a médio e longo prazo. “A Força Nacional tem no máximo 2 mil pessoas. A PM de São Paulo tem 95 mil. A PM do DF tem 16 mil. Não fará grande diferença o uso de tropas da União. Pode dar resultado em uma crise. O Exército ficou no comando no Rio em 2018, que também registrou queda no número de homicídios, mas foi menos que a média. Então a presença do Exército não faz diferença”, observa.
Para Leonardo Sant’Anna, especialista em segurança pública, o poder público não deve se concentrar apenas em mudar a legislação, mas também em políticas públicas para reduzir a desigualdade e a pobreza. “O Estado, hoje, não investe no jovem, no cidadão. Ele foca no criminoso, e o jovem desocupado fica mais vulnerável para ser cooptado pelas facções criminosas”, afirma.