Título: Mais democracia
Autor: Marco Maciel
Fonte: Jornal do Brasil, 03/04/2005, Outras Opiniões, p. A15

Ensina a Filosofia, não desacompanhada da Sociologia e da História, que ao desatar o nó da democracia novas demandas emergem com intensidade e não há outra resposta senão aprofundar, em sua essencialidade, o exercício da democracia. Os problemas da democracia exigem, portanto, mais democracia. Buscar sempre, entre o que nos separa, aquilo que nos pode unir, parece constituir o grande objetivo da Política, porque se queremos viver juntos na divergência, princípio vital da democracia, estamos fadados a nos entender.

Impõe-se assim acreditar na força das idéias, compreender que a política não pode ser o meio da conservação, mas de transformação, e que a firmeza das convicções não deve ser empecilho para o entendimento capaz de transformar o poder em instrumento de justiça, igualdade e paz social.

Faço tais observações por considerar que episódios significativos incorporados à nossa história brotaram da provisão da capacidade de entendimento de homens públicos de anteciparem-se às crises, e, de modo sintônico, resolvê-las em consonância com as aspirações nacionais. Fazer memória desses fatos que se transformaram em datas paradigmáticas serve, assim, de pedagogia cívica e ajuda a iluminar o futuro que se nutre daquilo que fica do que passou.

Vale anotar a coincidência de refletirmos sobre as duas décadas da Nova República idealizada por Tancredo Neves e efetivada por José Sarney, no mesmo instante em que transcorrem os 150 anos do Gabinete de Conciliação, articulado e presidido pelo Marquês de Paraná, notável pró-homem das Minas Gerais, estadista que o presidente Tancredo Neves muito admirava e revelara, se tempo houvesse, a intenção de biografar-lhe.

A Nova República foi fruto de amplo acordo aberto aos partidos políticos e à sociedade civil, tendo como núcleo o PMDB e a Frente Liberal, assim cognominada a dissidência do PDS que se reuniu em torno da expressiva liderança do então vice-presidente da República, Aureliano Chaves. O documento constitutivo desse pacto intitulado ''Compromisso com a Nação'' estabelecia, ao lado de preceitos doutrinários, objetivos programáticos essenciais para que o Brasil se reinserisse no estado democrático de direito, promovesse o encontro entre o governo e a sociedade, através de adoção de medidas também no campo social, cultural e econômico. Para tal era indispensável concluir, sem ressentimento, o processo de transição para a democracia, com o término do regime militar.

O percurso havia sido encurtado com a promulgação da Emenda Constitucional nº 11, de 1978, resultado da chamada ''Missão Petrônio Portella'', que autorizara a revogação dos Atos Institucionais e Complementares, garantira a anistia, restabelecera as condições para a pluralidade partidária e assegurara o livre funcionamento dos sindicatos, entre outros dispositivos contendo inequívocos avanços político-institucionais.

Se é verdade que o falecimento de Tancredo Neves causou enorme comoção, deixou, todavia, um exemplo a nos inspirar e um programa a cumprir. É de realçar, por dever de justiça, a exemplaridade de gestos e ações de seu companheiro de jornada, senador José Sarney. Investido na Chefia de Governo, o então vice-presidente transformou o ''Compromisso com a Nação'' na bíblia do governo.

Dentre os objetivos fundamentais impõe-se sobrelevar a convocação da Constituinte, através de mensagem do presidente Sarney ao Congresso Nacional, de que resultou a Carta de outubro de 1988, que Ulysses Guimarães chamou de ''Constituição Cidadã''. Com ela, encerramos um longo, todavia exitoso, processo que assegurou ao país viver sob um autêntico estado democrático de direito, e instaurando uma verdadeira democracia no Brasil.

A nossa transição para a democracia - ouso afirmar sem receio de contestação - foi, na segunda metade do século XX, tanto em extensão quanto em densidade, a mais bem sucedida, mesmo se comparada com a da Espanha, cujos cânones foram fixados nos Pactos de Moncloa. Daí insistir na necessidade de conferir, na semântica dos nossos tempos, urgência às reformas institucionais, cuja inadiabilidade está cada vez mais visível.

Precisamos, depois de consolidada entre nós a democracia, enquanto processo, fertilizá-la substantivamente, com os instrumentos da governabilidade. É indispensável mudar o sistema eleitoral para que o voto deixe de ser ''fulanizado''; vertebrar verdadeiros partidos enquanto canais de interlocução entre a sociedade e o Estado; aperfeiçoar o sistema de governo para melhorar o desempenho dos Poderes e seu relacionamento no modelo presidencialista que praticamos; redesenhar o Estado Federal para compatibilizá-lo com as exigências de descentralização; e finalmente, revigorar as instituições republicanas, isto é, ''republicanizar a República'', para eliminar a incerteza jurídica e assegurar a todos plena cidadania.