O Globo, n. 31511, 15/11/2019. Sociedade, p. 28

‘Nossa aparente normalidade inclui uma rotina de catástrofes’
Entrevista: Ailton Krenak


Deixar a mansidão do Vale do Rio Doce, em Minas Gerais, para aterrissar no Rio na hora do rush noturno da última segunda-feira chuvosa e ir direto para uma entrevista exige uma dose de complacência do pensador e ambientalista Ailton Krenak.

“Acho que não pensei direito quando topei”, diz, com humor e toda serenidade do mundo, o líder indígena de 66 anos, que está na cidade para mediar a segunda edição do “Selvagem”, ciclo de debates entre ecologistas que termina hoje, no Teatro do Jardim Botânico.

Mas, depois de se aninhar no sofá de uma casa de vila na Gávea e de inalar um pouco de rapé (pó feito com folhas de tabaco), Krenak faz as pazes com o cansaço. Logo, está dando corda aos pensamentos que forjaram o elogiado livro “Ideias para adiar o fim do mundo” (Companhia das Letras), lançado neste ano.

Na conversa, o ativista mineiro denuncia a situação calamitosa do povo krenak, no Rio Doce, quatro anos após o rompimento da barragem da Samarco em Mariana; critica os planos do governo de exploração da Amazônia e questiona a noção de Humanidade “excludente”, que marginaliza os povos da floresta.

Segundo Krenak, é preciso entender a floresta como um mundo repleto de humanidades, e não um “arranjo de árvores” ou fonte de recursos. Para ele, a sociedade está imersa numa “ecologia do desastre”, que normaliza tragédias como o derramamento de óleo no litoral do Nordeste.

Qual a urgência de um evento como o “Selvagem”, reunindo pesquisadores da academia e da floresta para pensar o planeta?

Quando abrimos a perspectiva do “Selvagem”, queríamos transcendera realidade bruta do cotidiano. Os enunciados dos debates escapam da rotina, mesmo que agente não possa ignorá-la. São temas como a atmosfera, o cosmos, avida ... Os pensamentos que juntei no“Ideias para adiar o fim do mundo” têm esse propósito também, de não se render ao cotidiano, de pensara existência como parte da nossa presença no planeta. E,nesta plataforma que é a Terra, explorar possibilidades de existência. Sair da ideia de que avida tem a duração de uma pessoa, o que gera uma descontinuidade de propósito. É preciso questionara ideia de progresso que embasa o senso comum da suposta Humanidade.

O livro critica essa Humanidade, que exclui povos originários, como caiçaras, indígenas...

Essa ideia de Humanidade coloca os povos que vivem da terra numa borda, como se o planeta tivesse seções. Enquanto uns habitam, outros perambulam, zumbizando na marginalidade. Mesmo quando se tenta abrir o clube, levando a esses povos saneamento ou saúde, isso é feito como uma dádiva, não uma experiência de compartilhamento. É uma humanidade idealizada porque, se você apertar, não tem os valores que prega. Essa realidade gera uma a fixação por realização individual. E, na busca pela realização individual, a pessoa quer que o mar se dane, que a floresta se dane. Se ela se safar, o mundo pode afundar. Essa radicalização me deixa desolado. Temos chance de conhecer uns aos outros ou vamos aprofundar o individualismo?

A gente está tão obcecado com nossas carreiras, produtividade, que não se dá conta de que vivemos em desequilíbrio?

Esse “a gente” é a população do planeta afetada por esse choque mental. A lógica da produção não para. Agora mesmo, estamos com as praias cheias de borras de óleo, empastelando os mangues, e as pessoas perguntam como chegamos a esse absurdo. A aparente normalidade que vivemos inclui um cotidiano de catástrofe que vai sendo naturalizado. Se não fosse naturalizado, estaríamos arrancando os cabelos, perguntando o que aconteceu com a costa do Nordeste. As pessoas que moram naquelas praias dependem do que tiram do mar, num sistema artesanal. Eles não têm tecnologia pra superar a crise e sair vitorioso, como a narrativa do progresso sugere.

Como é essa narrativa?

E uma narrativa que diz que, quando há um acidente, cria-se uma oportunidade. E aí a sociedade vai criando acidentes e oportunidades. É a ecologia do desastre. Quando somos convencidos de que uma crise na nossa relação com a natureza pode ser assimilada, seguimos agindo como sempre, achando que vamos resolver tudo. As pessoas se acostumaram com as tragédias, incorporaram na rotina, criando uma ecologia humana para viver com a desgraça. Botam máscaras para viver com a poluição, mudam a rotina da escola, determinando que naquele mês não tem aula porque o ar fica irrespirável. Na ecologia do desastre, você se adapta a um sistema estragado como se fosse natural. E assim vai. As praias do Nordeste ficam empasteladas, e a gente fica aqui, esperando nossa vez.

Mas já existe a consciência de que o planeta não é infinito e que estamos causando danos à Terra. Os povos da floresta correm um risco maior?

A ideia de um planeta infinito mudou, mas, com isso, muda a visão sobre o acesso das populações tradicionais a seus territórios. Ora, o discurso do governo brasileiro vai contra a Constituição Federal, que assegura aos povos indígenas as suas terras. O governo diz que vai rever isso. Só a manifestação pública dessa vontade já é grave, cria constrangimento para todos. Como o governo de um país ataca sua população originária acusando-a de não colaborar com o progresso? De não ceder seus rios para hidrelétricas ou suas terras para mineração? Como se houvesse uma cruzada para salvar o capitalismo falido arrancando tudo da terra? Esses povos sempre dirão que a terra é nossa mãe e não está à venda.

Há uma falta de entendimento do que é uma floresta?

As pessoas imaginam que a floresta é constituída apenas por árvores. Não estamos falando de um arranjo de árvores que podem ser levadas em um caminhão como mercadoria, mas de uma galáxia de interação com a vida, repleta de humanidades. É intangível. Só que é difícil explicar isso a alguém que nunca esteve na floresta com um povo indígena. É o lugar onde a vida acontece, e não uma fonte de recursos. Quando digo que a floresta é um mundo, as pessoas acham uma simplificação. Porque nunca viram a floresta. Assim como muita gente nunca viu o oceano. A compreensão da floresta como algo vivo implica num respeito que estabelece uma ética da existência, a reciprocidade com a natureza.

Neste mês, completaram-se quatro anos desde que se rompeu a barragem da Samarco, em Mariana. Como está o povo krenak, que vive às margens do Rio Doce?

É um povo exilado em seu próprio território. Estamos há quatro anos com o Rio Doce estagnado de lama da mineração. As famílias vivem de cesta básica, da assistência que o Ministério Público exige da Vale, da Samarco, da BHP, responsáveis por esse crime. Gente que era independente, que vivia do rio, agora depende de assistência. Se esperar o rio voltar a ter peixe, a gerar subsistência, pode levar 20 a 30 anos. É uma geração que vai nascer e crescer na beira de um rio interditado. Uma visão assustadora do futuro.