O Globo, n. 31615, 27/02/2020. Mundo, p. 23

Abertura de arquivo secreto: Vaticano abre os segredos do pontificado de Pio XII

Lucas Ferraz


O Vaticano abre no próximo dia 2 de março o arquivo secreto daquele que é considerado o período mais controverso da História recente da Igreja Católica, o pontificado do italiano Eugenio Pacelli, o Papa Pio XII. Alvo de polêmicas dentro e fora da Igreja e cobrado por estudiosos há mais de cinco décadas, o arquivo compreende os anos de 1939 a 1958, o que coincide com a Segunda Guerra Mundial, evento que permanece como uma sombra no legado do pontífice. O italiano foi o segundo papa mais longevo do século XX, atrás do polonês João Paulo II (1978-2005).

Para um dos especialistas em História do cristianismo, Alberto Melloni, a abertura da documentação deve derrubar duas caricaturas que se consolidaram ao longo do tempo: a que considera, de um lado, Pio XII como o “Papa de Hitler” por sua omissão durante o Holocausto, e, de outro, a que sustenta sua ajuda para salvar centenas de judeus, narrativa iniciada no pós-guerra.

A liberação do arquivo foi anunciada pelo Papa Francisco em março passado, quando a eleição de Pacelli completou 80 anos. À época, o argentino disse que a Igreja “não deveria ter medo da História”. Não há regras na Santa Sé para a desclassificação de documentos históricos, sempre decidida pelo Santo Padre.

Acordo com Hitler

Estarão disponíveis aos pesquisadores cerca de 20 mil fascículos, entre eles telegramas da Secretaria de Estado (que cuida da diplomacia vaticana) e de outros órgãos internos, representando o maior volume já liberado pela Igreja. Cada um desses fascículos pode conter centenas de documentos, explicou o cardeal português José Tolentino de Mendonça, responsável pelo Arquivo Apostólico do Vaticano — que até outubro passado era conhecido como Arquivo Secreto, nome alterado por decisão do Papa.

Eleito em 1939, meses antes de estourar o conflito na Europa, Pio XII foi acusado de omissão durante a guerra e de ajudar na consolidação do poder de Adolf Hitler (que era católico). Nascido em Roma, Pacelli foi uma das figuras mais influentes no Vaticano na primeira metade do século XX. Núncio apostólico (equivalente a embaixador) na Alemanha nos anos 1920, quando Hitler despontou nacionalmente, ele assumiu em 1930 a Secretaria de Estado da Igreja.

Em 1933, ele assinou um pacto com o regime nazista que protegia os direitos de associações católicas alemãs, o que foi considerado — como sustentam historiadores como o inglês John Cornwell, autor do best-seller “O Papa de Hitler” — fundamental para consolidar o totalitarismo na Alemanha. O acordo foi fechado quando o governo da Alemanha já escancarava a perseguição aos judeus e a esterilização compulsória de deficientes. 

Um dos aspectos inquietantes do pontificado de Pio XII, anos mais tarde, foi seu silêncio diante do Holocausto.

— Não há dúvida de que o Papa escolheu o silêncio sobre o extermínio dos judeus. É fato que durante a guerra ele nunca pronunciou em público a palavra judeu. E que ele não deu curso à mudança que estava sendo gestada pelo antecessor de publicar uma encíclica contra o racismo. Mas nem por isso ele pode ser transformado em coautor do plano genocida — afirma Melloni.

Na Igreja no século XX, não foi só Pio XII que flertou com um regime totalitário. Seu antecessor, Pio XI, também referendou o poder fascista de Benito Mussolini na Itália — eles chegaram ao poder no mesmo ano de 1922. Essa relação igualmente ambígua é descrita no livro “Mussolini e o Papa”, do pesquisador David Kertzer, professor de antropologia e de estudos italianos da Universidade de Brown, nos Estados Unidos. A obra — baseada nos arquivos de Pio XI abertos desde 2005 — descreve como Pacelli bloqueou a publicação de uma encíclica contra o racismo e a perseguição do nazifascismo preparada pelo antecessor pouco antes de morrer.

Kertzer é um dos cadastrados no Vaticano para pesquisar os arquivos de Pio XII já no dia 2 de março, prevendo inicialmente uma imersão de quatro meses na documentação relativa ao início da Segunda Guerra. Pesquisadores do Museu do Holocausto de Washington também estarão presentes.

O arquivo tem capacidade para receber até 60 pessoas por dia — a média é de 1.200 pesquisadores por ano, número que deve aumentar com a abertura dos novos papéis. Estudiosos e arquivistas da Santa Sé ressaltam que será necessário tempo até que se encontre alguma novidade.

O professor Kertzer diz que o interesse no pontificado de Pio XII não se resume ao conflito armado (1939-45), citando o período inicial da Guerra Fria, quando o pontífice era um dos principais críticos do comunismo. Pacelli temia que, com a queda do fascismo na Itália, o país fosse dominado por aliados da União Soviética. O então Papa também era contrário à criação do Estado de Israel.

Há historiadores e sobretudo religiosos que consideram haver um exagero no julgamento de Pio XII, palavra já usada por Francisco ao falar sobre o antecessor. O monsenhor Sergio Pagano, prefeito do Arquivo Apostólico, comentou com jornalistas que surgirão “muitos documentos” sobre o auxílio do Papa aos judeus. No passado, o Vaticano informou que Pio XII atuou silenciosamente nos bastidores para não piorar a situação. Muitos conventos católicos (em Roma e em outras cidades europeias) abrigaram judeus que escapavam da perseguição nazifascista.

Canonização se arrasta

O rabino Riccardo Shemuel Di Segni, da Comunidade Hebraica de Roma, ressalta que não se conhece — até agora — prova ou documento de que Pio XII agiu diretamente para salvar os judeus. Ele menciona um episódio em particular para ilustrar a sua omissão. No dia 16 de outubro de 1943, quando Roma estava sob ocupação nazista, houve uma grande operação na cidade contra os judeus: 1.024 pessoas foram presas e levadas para campos de concentração — apenas 16 sobreviveram. Antes da deportação, elas ficaram detidas num colégio militar que ficava a 700 metros do Vaticano.

— Pacelli não disse absolutamente nada a respeito, e isso acontecia ao lado da casa dele. Ele sabia o que estava acontecendo, mas preferiu não fazer nada para mudar o destino dos capturados — afirma o rabino Di Segni.

Referenciado por católicos conservadores e candidato a santo (seu processo tramita lentamente desde a década de 1960), Pio XII deve continuar no centro de uma luta pela memória, prevê Alberto Melloni.

Ele conta que Pacelli se “parece terrivelmente” com tantos outros católicos que ignoraram o Holocausto porque “acreditavam não ter nada a ver com aquilo”. Considerado excessivamente diplomático, o Papa preferiu deixar a Igreja longe do conflito. Melloni lembra que os arquivos muitas vezes não guardam “confissões”, mas que eles certamente ajudarão no lento processo da “verdade histórica, que é muito diferente da verdade de um tribunal”.

— Interessa entender por que o Papa se comporta como tantos, e tantos se comportam como ele. Pio XII se revelou um diplomata que falhou em entender as tendências das décadas de 1920, 1930 e do pós-guerra” — disse o especialista.