O Estado de S. Paulo, n. 46941, 25/04/2022. Notas & informações, p. A3

É preciso conhecer a história da ditadura



A recente divulgação, feita pela jornalista Miriam Leitão, no jornal O Globo, de gravações de sessões do Superior Tribunal Militar (STM) entre 1975 e 1985 revela a importância tanto da transparência no trato das coisas públicas como do trabalho de pesquisa histórica sobre esse período ainda tão recente. Equivocase quem acha que tudo já está esclarecido. Há muito a ser conhecido, estudado e debatido sobre a ditadura militar. Um povo que ignora sua história desconhece a si mesmo, além de ser presa fácil dos autoritários de plantão.

O acesso às gravações das sessões do STM foi obtido depois de uma longa batalha judicial. Em 2006, a Corte militar negou o pedido feito pelo pesquisador e advogado Fernando Fernandes, que, no doutorado, havia estudado atas e discursos do STM. Em 2015, o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu pela liberação dos arquivos da Corte militar relativos ao período da ditadura.

Os áudios foram entregues a Fernando Fernandes em 2017. “A abertura desse arquivo é algo fundamental não só para pesquisa de um historiador como eu, mas para milhares de pesquisas que podem ser feitas sobre o regime de 64, sobre a atuação do STM, sobre a atuação dos advogados, para se compreender melhor a história do Brasil”, disse Fernandes na ocasião. Desde então, o historiador Carlos Fico, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), tem estudado e organizado o conteúdo dessas gravações.

Esse trabalho de pesquisa histórica é imprescindível. Certamente, debruçar-se sobre o período da ditadura militar traz incômodos para muita gente. Basta ver que o STM queria manter os áudios secretos. Felizmente, o STF assegurou a publicidade. A população tem o direito de saber como eram as sessões da Corte militar. Tem o direito de conhecer a história de seu país.

Sempre importante, a pesquisa histórica sobre a ditadura militar adquire especial relevância nos tempos atuais, em que se verifica um esforço deliberado – verdadeira manobra política – de negar ou minimizar as violências e agressões cometidas pelo regime militar. Há uma flagrante manipulação dos fatos históricos, com consequências nefastas para a cidadania e o exercício dos direitos políticos. Tal é a situação que há quem não veja, por exemplo, incompatibilidade entre a defesa da liberdade de expressão e a defesa do regime militar. Ora, na ditadura houve censura dos meios de comunicação. No caso deste jornal, que nunca se submeteu às ordens do regime sobre o que era proibido publicar, havia inclusive censores dentro da Redação.

Outro evento histórico sobre o qual há frequente manipulação é o Ato Institucional n.º 5 (AI-5). Considerado o “golpe dentro do golpe”, o AI-5 conduziu o País a um sinistro período de arbítrio, censura, repressão e cerceamento das liberdades civis e dos direitos individuais. Ao longo de seus 11 anos de vigência, o ato de profundo autoritarismo produziu muitos males que ainda hoje são sentidos. Foi uma brutalidade do regime militar contra a população brasileira, mas há quem queira defendê-lo ou, mesmo, ventilar a possibilidade de uma reedição em suposta “defesa do País” contra inimigos imaginários. O negacionismo histórico não é mera falha acadêmica, mas substrato para velhas e novas arbitrariedades.

Cabe advertir, ao mesmo tempo, que a defesa da pesquisa histórica não guarda relação com a pretensão de alguns de rever a Lei da Anistia. São coisas distintas, em âmbitos distintos. Há muito a ser conhecido, estudado e debatido sobre a edição dessa lei, suas circunstâncias e seus pressupostos. Mas o conhecimento mais aprofundado e rigoroso do que foi o regime militar – tarefa necessária para a sociedade brasileira – não é motivo para rediscutir a validade jurídica da Lei da Anistia. Tal pretensão seria ignorar os fatos históricos, numa releitura rasa sobre o que uma anistia significa e que bens ela protege, além de desmerecer as instituições democráticas pós1988. O STF reconheceu, em 2010, a validade e legitimidade da Lei da Anistia. Conhecer a história, sim; reescrevê-la, negando os fatos, não.