O Globo, n. 31444, 09/09/2019. País, p. 4

Moradia popular vira alvo do crime
Marco Grillo
Camila Bastos


Com ameaças de morte e agressões físicas, o crime organizado tem expulsado moradores e expandido os domínios para conjuntos habitacionais do Minha Casa Minha Vida espalhados pelo país. Investigações em andamento apontam que criminosos chega mater as listas de beneficiados pelo programa e, de arma em punho, exigem que os proprietários deixem os imóveis em prazos que variam de cinco minutos a duas horas. Em outros casos, os apartamentos são arrombados enquanto os donos estão fora. Levantamento feito pelo GLOBO mostra que, no intervalo de um ano, as invasões aconteceram em pelo menos cinco estados: Ceará, Espírito Santo, Minas Gerais, Pará e Rio.

As apurações também revelam os mecanismos de atuação do crime organizado. Um inquérito descobriu que um chefe de facção, ainda preso, mandou uma carta a um de seus comparsas pedindo que um apartamento em um condomínio ocupado fosse “reservado” para quando ele deixasse a cadeia. Os moradores expulsos precisam se hospedar na casa de familiares e parentes e, em alguns casos, sequer registram boletins de ocorrência, por medo de represálias. A formalização da denúncia é uma condição obrigatória para que seja possível migrar para outra unidade do Minha Casa Minha Vida.

Em Belém, dois condomínios foram ocupados em março. Cerca de 70 famílias foram expulsas —15 prestaram queixa. Um dos proprietários disse à Polícia Civil que teve o apartamento “invadido por quatro indivíduos, com máscaras no rosto e portando armas de fogo”. O grupo fez ameaças de morte, e os moradores foram obrigados a deixar o imóvel imediatamente. Televisão, sofá, geladeira, entre outros objetos, ficaram para trás.

Outro morador contou aos investigadores que, ao chegar em casa, percebeu que a fechadura havia sido trocada. Um homem atendeu a porta e disse que o proprietário deveria sair dali, sem prestar queixa: “Não traz nenhum policial aqui, senão você já sabe”, disse o criminoso, de acordo com o relato. Com base nos depoimentos, há a suspeita de que os invasores tiveram acesso à lista como nome dos beneficiários.

Terror e prejuízo

A Defensoria Pública estuda entrar com uma ação caso os moradores não sejam realocados ou passem a receber aluguel social ainda este mês.

— Nenhuma dessas famílias foi contemplada com outras unidades ainda — afirma o defensor público Adriano Souto. Os conjuntos habitacionais em Belém foram tomados por traficantes de uma facção do Rio, que disputa o controle do tráfico de drogas no Pará com um grupo local.

Em Itaúna (MG), traficantes também ocuparam um condomínio do Minha Casa Minha Vida. Uma operação de busca e apreensão encontrou, além de armas, drogas e munições, uma carta em que um criminoso preso mandava um comparsa “invadir e reservar” um apartamento para ele. O Ministério Público Federal (MPF), que acionou a Justiça pedindo a reintegração de posse, definiu a situação como um “quadro de criminalidade instalada e de invasões generalizadas”. Até que o conjunto fosse desocupado por ordem judicial, em abril, a Polícia Militar fez 15 operações na área. Cinco meses depois, moradores que permaneceram no condomínio durante a invasão relembram o pânico:

— Ficavam usando drogas nas escadas, andando armados, gritando que a gangue que mandava aqui — conta a aposentada Maria Lúcia de Souza. Outra moradora tentou resistir, mas se mudou depois que não teve coragem de sair em uma madrugada em que a filha de três meses teve febre.

— Estava uma confusão lá fora que só parou de manhã — lembra a moradora que, com os gastos que teve com aluguel, atrasou as parcelas do financiamento e agora tenta renegociar o valor coma Caixa Econômica Federal.

— Comprei esse apartamento por mais de R$100 mil. Quando saí, tive que pagar aluguel e atrasei as parcelas. Estou tentando negociar o valor, porque isso aqui não vale mais a mesma coisa, e eu não saí porque eu quis.

Moradores de um condomínio em Fortaleza enfrentaram situação semelhante. Cerca de 50 famílias deixaram um empreendimento que foi invadido por integrantes de uma facção local. A investigação cita ordens de “expulsão em cinco minutos”, fechaduras trocadas e ameaças de morte.

“Os casos de impedimentos de fruição dos direitos dos novos proprietários do Programa Minha Casa Minha Vida estão ocorrendo mediante atos de violência e grave ameaça a esses beneficiários. Ocorrências de esbulhos violentos das unidades habitacionais estão proliferando em todos os residenciais do Programa Minha Casa Minha Vida situados em Fortaleza e Região Metropolitana”, escreveu o MPF.

A Justiça chegou a determinara reintegração de posse, mas interrompeu o procedimento depois que muitos moradores, com medo, recusaram-se a voltar. A expectativa deles é que sejam realocados pela Caixa em outro empreendimento, mas, antes disso, o banco aguarda que o governo do Ceará indique novos beneficiários para os apartamentos hoje invadidos e que deverão ser desocupados.

Em meio ao impasse, a Justiça determinou a busca e apreensão de documentos da administração estadual que indiquem quem preenche os critérios técnicos para comprar os imóveis. A decisão afirma que a “providência é essencial ao cumprimento com eficácia dos mandados de reintegração de posse, a fim de que sejam evitadas novas invasões”.

Na semana passada, O GLOBO mostrou que um condomínio em Niterói (RJ) foi invadido antes mesmo de ser concluído. Criminosos com fuzis ameaçaram moradores. Em Serra (ES), também houve relatos de expulsões determinadas por traficantes. Em julho, os imóveis foram desocupados e devolvidos para a Caixa.

Questionada sobre o número de imóveis que foram invadidos por criminosos e a quantidade de ações judiciais em que requer a reintegração de posse, a Caixa não respondeu. O banco informou que “encaminha denúncias ao poder público com objetivo de integrar ações preventivas e corretivas de condutas ilícitas em programas habitacionais da União ”.

“Ficavam usando drogas nas escadas, andando armados, gritando que a gangue que mandava  aqui”

Maria Lúcia de Souza, moradora de um prédio do Minha Casa Minha Vida

“Quando saí, tive que pagar aluguel e atrasei as  parcelas”

Moradora que deixou o imóvel após invasão