O Globo, n. 31564, 07/01/2020. Mundo, p. 20

Cerimônia da vingança

Renato Machado


O dia de homenagens ao general Qassem Soleimani em Teerã teve ontem como tônica o pedido de uma vingança dura contra os autores do seu assassinato, vindo da filha do militar, de altas autoridades e também de manifestações espontâneas da população iraniana. Na despedida da capital ao general, uma cerimônia foi realizada na mesquita da Universidade de Teerã, que ficou logo cercada por uma multidão de milhares de pessoas, que tomou todas as ruas ao redor do prédio e depois saiu em cortejo pela cidade.

A cerimônia na universidade foi reservada para convidados, principalmente militares, clérigos, políticos, membros do Judiciário e parentes. O líder máximo do Irã, o aiatolá AliKha menei, se debruçou sobre o caixão de Solei mani e chorou. Os dois eram próximos, e o general era conhecido por sua lealdade extrema à mais alta autoridade do país.

— As famílias de soldados americanos no Oriente Médio vão passar os dias esperando pela morte dos seus filhos. Trump, maluco, não pense que tudo acabou com o martírio do meu pai — disse a filha do militar, Zeinab Soleimani, acrescentando que “um dia escuro” recairá sobre os Estados Unidos e Israel.

O substituto de Soleimani no comando das Forças Quds —unidade de elite da Guarda Revolucionária — também prometeu retaliar o ataque dos EUA, ocorrido há cinco dias no Iraque.

— Nós prometemos continuar o caminho do mártir Solei mani coma mesma força, e a única compensação pelo seu martírio seria remover os Estados Unidos da região— afirmou o general EsmailGha ani. —Deus, o Todo Poderoso, prometeusua vingança, e Deu sé o maior vingador.

A região central de Teerã amanheceu tomada por uma multidão gigantesca. Analistas na mídia iraniana afirmavam que a última vez que uma multidão tão numerosa se reuniu havia sido no enterro do aiatolá Khomeini, líder da Revolução Islâmica de 1979. Famílias levaram crianças, muitas ainda no carrinho de bebê. Muitas delas tinham amarradas na testa uma faixa vermelha, com a palavra “vingança” escrita em branco, que também era usada pelos adultos.

A certa distância, tinha-se a impressão de que um mar negro ocupava as ruas. A maior parte das mulheres vestia o chador, túnica preta que deixa apenas a face à mostra. Homens também trajavam roupas sociais escuras. No entanto, mulheres com vestimentas mais coloridas e apenas um véu para cobrir parte do cabelo, além de jovens com roupas esportivas da moda e adultos com calças jeans e casacos bem cortados deixavam claro que a cerimônia não era seguida apenas pelos mais conservadores ou por uma classe social específica.

Convocação por celular

O governo iraniano contribui upara alimentara cerimônia decretando feriado. Além disso, logo nas primeiras horas da manhã, as operadoras de celular enviaram mensagens com os horários e locais das cerimônias. No entanto, além das ações estimuladas pelas autoridades, o que se viu nas ruas eram pessoas comuns emocionadas e criando formas próprias para homenagear Soleimani.

Na saída da estação do metrô Theatr-E Shahr, um senhor distribuía pequenos cartazes para a multidão que tomava as ruas. Neles estavam a imagem do general Qassem Soleimani sendo abraçado pelo imã Hussein — neto de Maomé e figura das mais importantes do xiismo, que morreu no massacre de Karbala, hoje no Iraque. Zahrob Keshvarzi conta que usou o próprio dinheiro na impressão e chegou ontem às 6h para entregar ele próprio o material aos participantes da cerimônia do funeral do herói de guerra iraniano.

— Isso é muito pouco perto do que Haji Qassem (apelido de Soleimani) fez pela nossa nação — respondeu ao GLOBO, quando questionado quanto investiu.

As imagens de Soleimani nas mãos das pessoas foram um dos traços mais marcantes do cortejo. Homens e mulheres exibiam jornais com grandes fotos do general nas capas e cartazes. Alguns deles que apresentavam indícios de serem propaganda oficial mostravam fotos do militar ao lado de Khamenei. A maior parte, no entanto, mostrava apenas o rosto de Soleimani com expressões e frases que exaltavam seu heroísmo, ou então pediam vingança: “Seu sangue [do Soleimani] pode derrotar qualquer um”, dizia um deles. Algumas famílias faziam montagens simples em cartazes, em preto e branco, mostrando Haji Qassem ao lado de seus próprios mártires, parentes que morreram na Guerra Irã-Iraque.

O cortejo começou na Avenida Enghelab (“Revolução”), que passa em frente à Universidade de Teerã, e seguiu lentamente por causa do grande número de pessoas. Em uma camionete, um homem puxava canções de luto, normalmente usadas nas cerimônias religiosas. Em cada pausa, slogans eram repetidos pela população, a maior parte pedindo vingança: “Sem negociação, apenas vingança”, dizia um deles; “Nada de cooperação, nada de desistir, vamos para a batalha com os Estados Unidos”, seguia outro.

Em determinado momento, o cortejo parou. Alto-falantes começaram a reproduzir a cerimônia religiosa dentro da mesquita da universidade, e todos fizeram o mais absoluto silêncio, apenas repetindo frases religiosas do rito. Muitos homens e mulheres começaram a chorar ou simplesmente forçavam o choro — simular o choro é apreciado no xiismo, porque considera-se também a vontade de mostrar empatia.

— Eles são assassinos, são terroristas —começou a gritar uma jovem mulher, interrompendo o silêncio e precisando ser acalmada.

Foram mais de seis horas de cortejo até a Praça Azadi (“Liberdade”), um dos cartões postais de Teerã. Na chegada do corpo, a multidão começou a arremessar roupas e outros bens pessoais, apenas para tocar o caixão. Mas o corpo de Soleimani permaneceu pouco na Azadi e depois seguiu para Qom, cidade religiosa a duas horas de Teerã. De, lá seguirá hoje para Kerman, cidade natal do general, onde ele será enterrado.

Cartazes improvisados mostravam Soleimani ao lado de mortos na Guerra Irã-Iraque

Adultos e crianças usavam uma faixa vermelha, com ‘vingança’ em branco.

Irã pede explicações ao Brasil sobre apoio aos EUA

> A Chancelaria iraniana pediu explicações à diplomacia brasileira, no domingo, sobre o posicionamento do Brasil frente aos acontecimentos, no Iraque, que culminaram com a morte do general Qassem Soleimani, da Guarda Revolucionária do Irã. Soleimani foi atingido por um míssil americano. Como o embaixador do Brasil naquele país, Rodrigo Azeredo, está de férias, a encarregada de negócios da embaixada, Maria Cristina Lopes, representou o governo brasileiro. > “A conversa, cujo teor é reservado e não será comentado pelo Itamaraty, transcorreu com cordialidade, dentro da usual prática diplomática”, informou o ministério.

> Como reação ao episódio, o Itamaraty divulgou uma nota, na última sexta-feira, praticamente respaldando o assassinato do militar pelos EUA. O órgão condenou várias vezes o terrorismo e, sem citar nomes, usou uma linguagem diplomática para demonstrar que, para o governo brasileiro, o general iraniano e a própria Guarda Revolucionária poderiam ser classificados como terroristas.

> “Ao tomar conhecimento das ações conduzidas pelos EUA nos últimos dias no Iraque, o governo brasileiro manifesta seu apoio à luta contra o flagelo do terrorismo e reitera que essa luta requer a cooperação de toda a comunidade internacional sem que se busque qualquer justificativa ou relativização para o terrorismo”, diz um trecho do comunicado, intitulado “Acontecimentos no Iraque e luta contra o terrorismo”.

> Na nota, o governo afirma que “o Brasil está igualmente pronto a participar de esforços internacionais que contribuam para evitar uma escalada de conflitos neste momento ”. Destaca, ainda, que o terrorismo não é um problema só do Oriente Médio e dos países desenvolvidos, “e o Brasil não pode permanecer indiferente a essa ameaça, que afeta inclusive a América do Sul”.

>A nota foi criticada por diplomatas da ativa e aposentados do Itamaraty por avalizar o assassinato de um funcionário de um governo estrangeiro, o que é considerado um ato de guerra, e rompera tradição brasileira de considerar terroristas as organizações dispostas em listas do Conselho de Segurança da ONU. (Eliane Oliveira, Brasília)